Haviam decorrido muitos anos e meses de vida monótona de prisão quando Dezembro chegou com seus frios e névoas e notícias vagas nos jornais relatando alguns incidentes em Goa.
Os jornais de Lisboa do dia seguinte davam, com fundo ressentimento e raiva incontida, a notícia de concentração das tropas indianas junto da fronteira de Goa, o que fez criar no meu coração a esperança de que havia chegado o princípio do fim. Soube-se também que os oficiais superiores e os comandantes do exército tinham fugido, tomados de pânico, para Mormugão, à aproximação das tropas indianas, destruindo as pontes e minando as estradas. Soube-se mais que a fragata “Afonso de Albuquerque”, quando uma canhoneira indiana abriu fogo fizera marcha à ré e fora varar na praia rochosa de Dona Paula.
No entanto, Salazar, fremindo de raiva, mandava constantes ordens pela rádio ao Governador Geral de Goa para resistir até ao último homem. Mas o Governador-Geral e o Comandante Militar não obedeceram às ordens do seu patrão Salazar, e renderam-se ao Comandante das tropas indianas para evitar o holocausto de inocentes vidas humanas, tanto dos militares portugueses como dos civis goeses para poupar Goa de ser reduzida a destroços e a terra queimada como Salazar sempre ameaçara nos seus discursos, caso os portugueses tivessem de sair de Goa.
Foi o Mgr. Gregório Magno Antão, um estrénuo nacionalista que, desprezando todos os perigos, atrevessou o rio Mandovi às 8 horas de noite de 18 de Dezembro de 1961 e entregou ao comandante das tropas indianas que haviam entrado em Goa, Major Shivdev Singh Sidhu, a Carta de Rendição do comandante do exercito português, Major Acácio Tenreiro.
Foi o pai do malogrado Major Shivdev Singh Sidhi (morte à traição após a rendição das tropas portuguesas, na noite de 18 de Dezembro, pela guarnição do Forte de Agoada, quando ia libertar os 35 presos nacionalistas na iminência de serem chacinados segundo a ordem dada pelo comandante do forte ao seu imediato, alferes Pinto), quem me mandou a fotocópia da Carta de Rendição, logo após o meu regresso do degredo, redigida nos seguintes termos:
“Cidade de Goa, 18/12/61
O Comandante Militar da Cidade de Goa declara que deseja parlamentar com o Comandante do exército da União Indiana com respeito à rendição.
Nestas condições, as tropas portuguesas devem, imediatamente, cessar fogo e as tropas indianas proceder de igual modo com o fim de evitar a chacina da população e a destruição da cidade. O Comandante; (as.) Acácio Tenreiro (Major)”
Quando a notícia da rendição iminente de Goa chegou a Lisboa, foi convocada com urgência a Assembleia Nacional e um Adv. Goês escolhido para Deputado pela União Nacional, o Partido único durante o regime de Salazar, preferiu um longo discurso cheio de jargons, convencido de que falava uma linguagem correcta e parlamentar e disse que “Nehru queria fazer fita”, pelo que ficou sendo conhecido entre os presos de Caxias por “Dr. Fita”. E reeditando a “His Master’s Voice”, acrescentou: “Qualquer de nós pode vir a ser Presidente da República. Todos nós – Hindus, Cristãos e Muçulmanos somos a favor da soberania portuguesa em Goa”, e outras bojardas de igual calibre.
Naquele dia, eu e Mohan Ranade saudamo-nos, mutuamente, no recreo com dois dedos em “V” significando Vitória.
Passados dois dias os jornais e a Rádio davam notícas, ansiosamente esperadas, de que as tropas portuguesas se tinham rendido em Goa. Senti-me exultante de alegria, de igual modo os meus companheiros que me felicitaram calorosamente. Logo depois daquela notícia, que se espalhara pelo Forte como um rastilho de pólvora, eu e alguns companheiros fomos transferidos para a sala onde se econtrava Mohan Ranade. Abraçamo-nos cheios de exaltação. E foram mais felicitações dos meus novos companheiros da sala.
Na tarde nevoenta de fins de Dezembro eu observo da janela da nossa sala as folhas amarelecidas, de que o Outono se esquecera, caindo dos árvores. E eu penso que, de mesma maneira, o poder colonial retrógrado, obsoleto e corroído tinha caído em Goa, nesta era de emancipação dos povos e de autodeterminação – o mais sagrado direito do homem.
(extraído de Quando as mangueiras floriram, quase-memórias)
O meu pai era um dos que teria sido chacinado nesse dia... foi por pouco. Felizmente não atenderam ás ordens de Salazar caso contrário eu não estava aqui :)
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