Saturday, 25 June 2011

Alberto de Menezes Rodrigues - A água do oásis (1965)

Um oásis no deserto!
Um oásis!
E eu bebo água da sua fonte,
Avidamente,
Porque sou um sequioso
E cansado viandante.

A água do oásis,
Como é refrigerante
E vivificante!

Sinto uma doçura inefável
Inundar-me a alma,
E a esperança, que me anima
É linda como a aurora
Que, surgindo acima do monte,
Espanca o nevoeiro
E tinge de rubro o horizonte.

Friday, 24 June 2011

Alberto de Menezes Rodrigues - A minha língua materna (1972)

Como é agradável, oh!, como é formosa
E doce a língua concani, a minha
Língua materna! Linda, deleitosa,
Como um rosa de jardim fresquinha!

Quando ouço uma canção ou poesia
Em concani, de boa composição,
Delicio-me. A beleza e a harmonia
Produzem em mim dúlcida impressão.

Numerosas palavras são mui belas,
Como gaian, uzvadd, nirmoll, sundor
Não parece que há música nelas?

Sinto imenseo não a ter cultivado.
Agora é tarde. Está perto o sol-pôr.
Desço a colina da vida cansado.

Alberto de Menezes Rodrigues - Imploração (1964)

Ardem círios sobre o Sepulcro.
A vossos pés, numerosos abolins,
Essas flores de Goa, de suave olor,
Parecem querer aliviar-lhes a dor.
Na capela-mor está a Cruz,
Onde, ainda há pouco, Vós vi pregado,
O Jesus!
E, em sua frente, numa mesinha,
Os três cravos que nela Vos haviam fixado
E a coroa de espinhos que Vos cingia a cabeça.
Anualmente, na Sexta-Feira Santa, comove-me este cenário
Que recorda o vosso horrível martírio no Calvário.

Um a um, os fieis beijam os vossos pés,
Ajoelhando, à beira do Sepulcro, com respeito e compunção,
Eu quero ser o último. Quero beijar-Vos, Senhor,
No silêncio e na solidão.
Anseio estar em grande intimidade convosco.
É triste esta hora, e um arrependimento sincero
Domina o meu ser que muito Vos tem ofendido.

Vós sois a mina Luz. Sois o Caminho, a Verdade,
Impelido pelo vosso imenso amor à Humanidade,
Quisestes morrer na Cruz,
A fim de a redimir e lhe abrir as portas do Céu.
Naquele dia, na Judeia.
Subindo o Calvário, íngreme e pedregoso,
Passastes por tormento horroroso!

Eu sou a urze mirrada da beira da estrada
Que aguarda com ansiedade
O despenhar da agua vivificante
Das nuvens do céu.
Eu necesito da vossa protecção.
Dai-me vossa bênção, ó Jesus ensanguentado!
Que ela fortaleça a minha alma tímida e atribulada
E me leve a cumprir devidamente os meus deveres
- Que tantas vezes me fazem penar! –
E evite o desalento,
O descorçoamento,
Se contratempos e frustrações me vierem esmagar.

Todos beijaram vossos pés e saíram da igreja.
Avanço para o Sepulcro em silêncio
E ajoelho
Vejo a vossa cabeça reclinada sobre uma almofada;
As pálpebras tranquilas e descidas sobre os olhos:
Os vossos pés trespassados.
Que profunda emoção eu sinto agora aqui:
Beijo os vossos pés respeitosamente.
Senhor! Senhor! Dai-me aquilo que Vos pedi!

Alberto de Menezes Rodrigues - A nossa terra e a nossa língua

A Divina Munificência
Mimoseou-nos com um lindo torrão,
Que causa intensa admiração
Àqueles que de longe o vêm ver.
Goa, a nossa Goa, é a PÉROLA DO CONCÃO!
É o pedaço mais belo da nossa bela Índia!
Praias de loira areia,
Que o Mar da Arábia beija incessantemente,
Debruam viridentes palmeiras,
Formosas Colinas com cajuais,
Penedias calvas, rochedos alcantilados,
Tudo banhado por um sol esplendoroso,
Rios azuláceos, serpeando por entre aldeias,
Realçam, aqui e ali, a beleza da paisagem.
Ladeando estradas e caminhos,
Crescem veigas, virentes, deleitosas,
Sob a concha azulina do céu.
Há faldas de oiteiros, frescas, namorosas,
Onde fontes de água cristalina
Entoam suas eternas canções
E as aves gorgeiam do nascer ao pôr do Sol.
Nas bandas do nordeste,
Enormes montanhas elevam os seus cumes ao alto,
Como que tentando um assalto
Ao infinito,
Tão fascinante é a beleza
De Goa,
Tão exuberante é nela a Natureza,
Que lhe chamaram com entusiasmo
PARAÍSO DA ÍNDIA!

Bela é também a nossa língua
- O concani –
Um filho ilustre do Bharat
Disse ser ela
A mais doce língua na Índia!
Enleva-nos a alma
Essa aprecição honrosa
Feita por alguém
Que não é de Goa.
A nossa língua
É na verdade, rica e harmoniosa.
Suas palavras são doces e frescas
Como essas fulvas volvolãs
Que se desprendem do vonvoleiro
Ao sopro da aragem
E vão aromatizar o chão
O próprio nome, o próprio nome que ela tem,
Não é lindo também?

Duas magníficas dádivas
Nos vieram do Senhor:
Dádivas de ternura e amor:
Terra bela
E língua bela.

A.D. - Nobilarchia Local (1977)

De quanto em quanto, aparecem em letra de forma referências à genealogia de Fulano ou Sicrano. Não acho descabido este meio de propaganda, sabido que o atavismo proveniente de boa cepa pode vir a influir favoravelmente na vida de um homem... Ora esta facto por mera associação de ideias, convocou-me ao espírito um mundo de reminiscências do que, vai já para anos, ouvira a um velhote patusco da minha aldeia, muito versado na Nobilarquia Local. O homem comprazia-se em desenrolar episódios vários, um que outro algo picaresco pondo à mostra a calva de muitos pretensiosos a blasonarem de fidalgos de quatro costados... O finório do velhote sabia contar isso com o seu peculiar sainete a dar a narração sabor de anedota. À titulo de curiosidade, vou reproduzir um deles, que se outra valia não tem, servirá quando menos para “desopilar o fígado dos leitores pouco dotados do sentido de humor”, no conceito do Reverendo Dr. Martinho Noronha, sem nutrir, porém, pretensões de ombrear com ele na sua ironia fina e alada.

Nos tempos que já lá vão, em que os governadores e vice-reis portugueses da Índia, por uma simples ordem de serviço faziam dos seus Pedrus, alferes de esquadra, quando lhes desse na tineta, um deles e dos mais prepotentes que por cá andaram, tinha um cozinheiro, lá das bandas da beira-mar, um virtuoso na arte culinária. O bom do governador, um ‘gourmand’ impenitente exigia ao seu Pedru, variações constantes no seu menu palaciano. E o pobre do nosso Pedru tinha de dar tratos à imaginação para inventar iguarias esquisitas a sabor do amo. Um dia, porém, já farto das suas caturrices, lembrou-se de fazer um xacuti de galo e serviu-lho ao jantar. O amo, de palato regalado pelo esquisito manjar, devorou-o avidamente até lamber os beiços e, chamando o cozinheiro à câmara vice-real, disse-lhe com palmadinhas no ombro: “Pedru, tu és a nata dos cozinheiros de Goa!”. O homenzinho, babando-se de gozo, dormiu nessa noite o sono dos felizes, sonhando com alguma benesse vice-real...

Noite velha, o Pedru estremunhando, saltou do seu catre ouvindo um burburinho pelos corredores do paço. Envergando à pressa o seu roupão de ganga saiu do quarto. Tudo andava numa roda viva – os camareiros e os famulos do paço a correrem desatinadamente; os aulicos a deambularem com a cara de caso, cofiando as venerandas barbas, pelos corredores anexos à câmara do doente que se contorcia no leito, soltando urros medonhos. Os cirurgiões da cidade reunidos em conclave estavam em brasa, incapazes de diagnosticar o mal e o governador a uivar de dor e praguejar contra a inépcia dos esculápios palacianos... O nosso Pedru, porém, que era um topa-a-tudo, deu no vinte. Obtida a vénia, consoante a pragmática palaciana, com curvaturas dorsais e zumbaias aproximou-se do amo já exausto do forças e, após o beija-mão da praxe, suplicou-lhe humildemente: Permite-me Vossa Senhoria, que eu faça alguma coisa a ver se posso aliviar o Vosso Sentimento? – Pois vai lá, meu Pedru. Faz o que quiseres que estou em artigo de morte.
O ladino do Pedru, aproximando-se do leito do enfermo, fez vigorosas massagens no baixo ventre por longo tempo, e, depois, introduzindo profundamente o indicador da mão direita no augusto recto do amo, descobriu um ossículo encravilhado na sua base. E, após hábil manobra, removeu-o destramente sem ninguém dar por isso. Era um ossículo do galo do xacuti, que obstruía a base do recto. O Vice-Real soltou um longo suspiro de alivio e abraçando-se ao cozinheiro, disse-lhe debulhado em lágrimas de alegria e gratidão: “Meu caro Pedru, tu vales mais que todos os cirurgiões juntos da terra. Não fosses tu eu rebentava de dor. Tu terás uma recompensa condigna pelo teu assinalado serviço...

E a munificência vice-real houve por bem conceder de uma penda ao bom do Pedru um vasto prazo-de-Coroa a valer quase um condado com todas as regalias inerentes...
Foi esta a origem de uma nova árvore genealógica que de lá para cá foi tida por nobre, enxertando-se através dos tempos, no seu tronco plebeu, vergônteas das árvores genealógicas mais distintas e nobres da nossa terra, sentenciava o meu velhote. E, para comemorar o nobre evento, o nosso simpático Pedru escolheu como brasão do seu solar um majestoso galo de barro, que colocado no cocoruto do balcão, em atitude de cantar, parece proclamar aos quatro ventos a origem da sua nobreza. É esta a razão por que no conceito popular, a nobreza desta casa está marcada com o epíteto de nobreza do C..., concluía o velhaco por entre casquinadas sonoras...

Anedota ou narração verídica?

Não estou habilitado a decifrá-lo dada a minha índole pouco afeita a meter-se em cavalarias altas nesta delicada matéria.

Thursday, 23 June 2011

Ananta Rau Sar Dessai - Divali do miserável (1963)

Hoje é o Divali, cada um ilumina a sua habitação
Como hei-de iluminar rua, que habito, se nada tenho à mão!

Hoje é o Divalio, cada um, tomando banho ostenta novos vestidos.
Como hei-de mudar os farrapos que visto – pois é uma regalia dos tidos.

Hoje é o Divali, cada um vai a Devalaia para fazer um Namascar a Deus
Não o faço – não o farei – digo-o descaradamente, podem dizer que sou dos ateus.

Hoje é Divali, cada um dá presentes aos amigos e parentes.
O que hei-de oferecer eu – que presentes farei – pois só me restam dentes.

Hoje é o Divali, cada um prepara para “Fou”, mil e um pratos
O que hei-de preparar eu – pois no lugar onde eu moro nem há ratos.

Hoje é o Divali, cada um convida para “Fou”, os seus amigos e vizinhos.
Para que hei-de e a quem hei-de convidar eu – pois estes, não existem aos pobrezinhos.

Hoje é o Divali, cada um se sente feliz em companhia da sua dama,
A minha dama – companheira fiel que nunca me larga, é esta grossa lágrima.

Hoje é o Divali, coração de cada um está cheio de alegria
Mas, o meu está inundado de tristezas, negá-lo falsidade seria.

Hoje é o Divali, cada um se lembra com gratidão Xri Krisna que matou o Narakassar
Mas, eu espero – aguardo com impaciência. Xri Krisna que matará o “Daridyassar”.

Hoje é o Divali, cada um festeja a libertação da injusta prisão do opressor dos milhares dos inocentes.
O meu Divali, festeja a libertação da injusta prisão do opressor dos milhares dos inocentes.

O meu Divali, festejarei eu, naquele dia em que serão libertos da miséria, eu, e como eu milhões dos entes.

Anonymous - R.V. Pandit (1970)

R.V. Pandit é um escritor e uma instituição. Escritor, porque escreve poesias, artigos e contos infantis. Uma instituição porque ele mesmo é o seu editor, financeiro e mecenas.
Há um “background” que felizmente lhe permite acumular estas duas funções. É que Pandit é um abastado proprietário, a quem escrever e publicar é um ‘vício’.

Eu chamei Pandit, um dia em que se o homenageava publicamente por uma comenda internacional, “doido”. E explicando, afirmei que um bom poeta tinha que ser necessariamente doido, ou por outra, uma pessoa fora no normal dos homens. Além de que, todos os grandes idealista da humanidade, desde Budha e Cristo a Gandhi tinham sido considerados doirados, quer pelos seus contemporâneos quer pela posteridade.

Bem sei que esta última afirmação terá sido aceite como sacrílega nesta terra em que muita gente professa “seguir” Cristo ou Gandhiji. Mas se as pessoas que se levantarem nos bicos dos pés para me acusarem de sacrilégio, procurassem na consciência e verificassem quanto do que Cristo e Gandhiji pregaram, elas aceitam na vida prática, se elas dão a face esquerda, quando alguém lhes prega uma bofetada na face direita, ou se eles permanecem não-violentos em pensamento e acção ao fazerem frente a um adversário que lhes procura adiantar poucochinho o cômoro numa várzea ou propriedade, então verificarão que não eu, mas eles próprios consideram implicitamente Cristo e Gandhi doidos, isto é, incapazes de serem seguidos na vida.

Mais tarde, quando expliquei a Pandit mais terra-à-terra porque o considerava “doido”, disse-lhe que por exemplo, ele gastava a sua fortuna em publicar os eus livros de versos, que não tinham saída suficiente para o recompansar. E ele, querendo-me por sua vez convencer da justeza do seu proceder, observou-me que muitos de sua classe tinham no passado e alguns têm mesmo hoje certos vícios, que em nada os abonam, e em que eles gastam e por vezes dissipam toda a sua fortuna. Em comparação, achava que investia o seu dinheiro numa boa causa. Disse-lhe que concordava absolutamente com ele e era por isso mesmo que o chamara “doido”, não no sentido pejorativo de anormal mas no encomiástico de forma de normal, extraordinário.

Foi o “doido” Cristo que disse ser mais difícil a um rico entrar no Céu do que a um camelo passar pelo orifício duma agulha. E contudo, se esprairmos a vista pela sociedade dos homens, em que é que os vemos mais ocupados? Não é em amontoar riquezas e deixar aos seus filhos grandes cabedais, vastos prédios e imponentes edifícios?

Quando vejo esta ânsia danada pelo El-Rei Dinheiro, fico a pensar se os adoradores de Cristo ou de Mamon. De facto, duvido mesmo que sejam crentes, como professam e que acreditem na vida supra-terrena como o céu e o inferno) ou na reincarnação. Porque, se fossem crentes de verdade, haviam de clcular que, no momento de deixarem o invólucro corporal, teriam de dar contas dos seus actos a Deus e receberem das mãos dele prémio ou castigo. De duas, uma.

Também não atinam que uma fortuna mal ganha, além de deixar o seu nome borrado e fedorento, deseduca os seus próprios filhos, que passam a ser na vida ou aldrabões de maior força (e por vezes acabam os dias na inglória) ou dissipadores de fortuna deixado pelos pais e do corpo e felicidade sua e de sua família. Sendo isso assim, que o muito sábio não seria gastar a fortuna em espalhar o bem, em plantar boas ideias, em criar boa poesia, magnificas obras de arte? As pessoas que assim procedem, parecendo a primeira vista doidos, são porventura os mais sábios dentre a classe. Pois ele garantem em vida a sua imortalidade (que é o mesmo que céu) e deixam aos filhos um bom exemplo, para os fazerem bons, grandes e sábios.

Quem conhece hoje os donos de tantas fortunas que se fizeram e ficaram para uma posteridade ingrata e infamada ou que foram dissipadas, não tendo ficado uma só pedra sobre a pedra?
Ao passo que todos conhecem ou procuram conhecer os grandes homens do passado que trabalharam pelo Bem-Comum ou que escreveram boa prosa ou boa poesia ou que deixaram painéis de arte É o céu na terra, mais palpável, incontestado.

De maneira que, voltando a R.V. Pandit, vimos que ele faz bem em despender parte dos seus proventos em criar literatura, e sobretudo na sua e nossa língua materna que carece desses Mecenas – infelizmente são muitos poucos para sair do olvido em que tem estado pelos séculos da dominação estrangeira.

Quando analizarmos a sua obra, veremos como Pandit inspira-se para a sua obra poética nos próprios servos da sua gleba, trazendo assim à discussão o próprio assunto desta parte da minha crónica: a validade da riqueza material versus riqueza espiritual.

Até outra vez, pois.

Monday, 20 June 2011

Cyrano Valles - Clareira de amor (1966)

Homem!
Porque tanta ira
No teu coração?
Porque tanta mentira?

Não nasceste
Para atiçar
As chamas do ódio
E da vingança,
Não. Não nasceste
Para cultivar
A seara do Mal
Mas sim para amar
A Vida inteira
O Verbo feito flor e carne.

Desperta, irmão,
Do teu negro torpor!
Abre uma clareira de amor
Nas trevas da tua condição
E sê, na verdade, o escultor
Da tua própria perfeição.

Júlio Martinho de Figueiredo - As nossa curumbinas (1964)

Eu gosto de vos ver, ó ledas curumbinas,
Intrépidas ladinas,
Nas várzeas a mondar.
Na vossa garrulice, iguais, todas irmãs,
Fazeis lembrar as rãs
Num charco a coaxar.

Simpáticas que sois, debaixo dos condés,
A chafurdar os pés
Na lama abençoada!
Da vossa estrénua lida é que nos vem, após,
O mimo dum arroz
Servido em carilada.

Às vezes, quando como um bom Xit Cuddi
(E quanto eu já comi!)
Recordo essas campinas,
No arroz vejo uma luta quase que viril,
E escuto no caril
A voz das curumbinas.

Orlando da Costa - Tagore (1961)

Fevereiro de 1941. Quando me encaminhei nessa tarde luminosa e triste para a Câmara Municipal de Margão, onde se realizava uma homenagem ao poeta acabado de falecer, levava eu o coração ansioso e confundido. Era a primeira vez que ia ouvir falar de um grande poeta indiano contemporâneo, que até dias antes eu ignorara. Ignorara sem pecado, porque as selectos e os livros de história que então me instruíam, não falavam em Tagore, como nunca falaram em Vyassa, Valmiki ou Kalidass. E, no entanto, vinte e oito anos atrás, em 1913, o poeta Rabindranath Tagore fora mundialmente consagrado com o Prémio Nobel da Literatura.

Apesar dos meus treze anos incompletos, assisti àquela sessão nos Paços Municipais da minha terra com uma angustiada consciência adulta, em que um súbito e indefinível sentimento de culpa agravava a minha comoção. Era como se assistisse ao funeral de meu avô, que teria desesperadamente desejado amar em vida. É essa sensação diluída que ainda hoje revive em mim, quando leio páginas de Rabindranath Tagore ou contemplo com orgulho e inexplicável satisfação o seu semblante de profeta, admirável de serenidade. Essa mesma sensação, a que hoje se alia uma capacidade interpretiva dos destinos do Homem diferente da que está contida no idealismo tagoreano, que me detém a mão ao escrever estas linhas, que apesar de curtas e despretensiosas não deixam de ser uma homenagem ao grade poeta, pedagogo, pensador e infatigável paladino da compreensão e convívio entre os homens e os povos do Oriente e do Ocidente que foi Rabindranath Tagore.

Ao lembrar a passagem do 1o centenário do nascimento de Tagore não podemos esquecer a prodigiosa riqueza da sua personalidade de artista e pensador, cuja vida e obra se fundem num mesmo gesto, humilde e soberano, de coerente procura da verdadeira felicidade, da defesa do património comum da humanidade, para além de fronteiras e religiões, da aproximação das culturas dos continentes do nosso mundo – mensagem de espiritualidade e universalidade.

Há cem anos nascia Rabindranath Tagore, no seio de uma família aristocrática e culta da província de Bengala, no nordeste do sub-continente indiano. Do meu familiar especialíssimo que envolveu a sua infância e particularmente de seu pai, Devendranath Tagore, cognominado ‘Maha-Rishi’ (Grande Santo), que foi um homem de afirmada personalidade mística e continuador do sociólogo hindu Ram Mohan Roy, o jovem Tagore recebeu as primeiras influências.

Educado, com os seus irmãos mais velhos, pelos preceptores da família, cedo sente nascer em si o inconformismo em relação aos sistemas aos sistemas tradicionais de ensino e a rebeldia contra a disciplina e a reclusão que lhe são impostas. De longe, através de uma janela que se abria para o exterior, contemplava ele sem fadiga a mais directa e imediata lição da vida – a natureza, que veio preencher a sua solidão e primeiras meditações, como uma lição de plenitude e liberdade, como um fim com o qual o homem, na realização do seu destino, deve comungar. “Das minhas mais longínquas recordações, amava apaixonadamente a Natureza”.

Dotado de uma sensibilidade invulgar, desde muito novo cultivava a poesia, com uma admirável espontaneidade. Aos 12 anos publica os primeiros poemas e aos 16 escreve para o jornal Barathi fundado por um dos seus irmãos. Teria 18 anos de idade quando, para cursar Direito, pois a família destinava-o à carreira de advogado, partiu para Inglaterra, de onde regressa aos 20 anos com os estudos por concluir.

O contacto inteligente e sentido com os poetas bengalis, seus antepassados inconformistas de entre os séculos XIV e XVI, Chandi Das, Kabir, Chaitanya, Vidyapati, que, num plano literário, haviam concorrido para afirmar a vitalidade da língua do seu povo, marca na obra de Rabindranath Tagore os primeiros frutos de uma herança nacional, da qual a sua poesia, em particular, e a restante obra, em geral, irá influir, numa fase de amadurecimento da sua personalidade, para caminhos de um mais amplo e profundo significado humano.

É, porém, o encontro com a mensagem quotidiana dos cantores vagabundos da sua terra, os ‘Bhauls’, a aproximação com o povo trabalhador e a vida rural, a compreensão subtil da Natureza que floresce na planície indo-gangética, que vai determinar a fisionomia última do seu lirismo, o fundo místico de coordenadas livres do seu pensamento, o ideal de amor da poesia de Tagore. Os poetas-cantores ‘Bhauls’, nome que vem do sânscrito ‘vayu’ e significa ‘excêntrico’, caracterizam-se pela sua não sujeição aos costumes sociais correntes, pela adoptação de uma como que religião de consciência que desconhece ritos ou sacerdotes e não se submete a um Deus particular (“se Deus está no templo, então a quem pertence o Mundo? Se Rama está na imagem que tu adoras, o que se passa onde não há imagens? Kabir), pela aceitação da liberdade de espírito, do amor por todos os seres, da alegria do corpo e do espírito, do respeito pela natureza e pela personalidade humana.

É nesses princípios activos que mergulham, com efeito, as raízes da universidade do espírito tagoreano. É também na conjugação rítmica imediata da recitação e do canto – forma de expressão ‘bhaul’ – que poderemos encontrar a sua mais autêntica forma de culto, espontâneo e livre, culto da vida, culto da unidade de todas as coisas: “Tudo o que existe vibra com a vida, porque saiu da vida”.

Quando aos 40 anos de idade, retirando-se para Shantiniketan (O Asilo de Paz), o ‘ashram’ (eremitério) criado por seu pai a cerca de cem milhas de Calcutá, Tagore funda, em pleno contacto com a Natureza, a sua famosa escola, começa a sua invulgar experiência de pedagogo, a que a Índia desde logo ficou a dever uma obra de notável alcance educativo e social. É com o dinheiro do Prémio Nobel da Literatura, que em 1913 obteve o seu belo livro de poemas “Gitanjali” (A Oferenda Lírica), que Tagore cria, anexa a Shantiniketan, a universidade internacional Visvabarathi, aberta a estudantes e mestres de todos os países, que por este meio procurava realizar um dos objectivos do internacionalismo e pacifismo da mensagem de Tagore – a união do pensamento oriental e ocidental, a aproximação dos valores culturais do Ocidente e do Oriente.

A personalidade de Rabindranath Tagore – cuja acção encontra de certo modo, em Romain Rolland um equivalente no mundo ocidental – através da sua vasta e riquíssima obra artística, de poeta e de músico, é um dos poucos exemplos do nosso século, em que um lirismo de inspiração autêntica e consumando-se num profundo e continuo sentido da beleza visível, se alia a um pensamento filosófico-místico assenta numa perene e universal liberdade de espírito, a uma verdade pedagógica liberal e progressiva, a um sentimento enraizado de amor e fraternidade humanos, onde não cabe, como princípio teórico e prático das relações humanas, qualquer forma de submissão ou lei de sujeição de um homem a outro homem ou de um povo a outro povo.

É essa mensagem de Paz e Amor que, com 54 anos de idade e durante vinte anos de espantosa actividade de conferencista, Radindranath Tagore, como um autêntico poeta ‘Bhaul’ em peregrinação pelo mundo, trouxe, ele próprio, aos distantes países da Europa, da América e do Extremo-Oriente. E essa mensagem que para além das contradições do seu idealismo filosófico, face a uma consciência colectiva surgida da evolução histórica das sociedades actuais dos dois hemisférios se mantém, quase sagrada para nós com a singular herança espiritual legada aos homens do mundo pelo maior poeta da Índia contemporânea.

RV Pandit - A Roda do destino (traduzido do concanim por Mucunda Quelecar, 1963)

Está a girar
A roda do destino,

Milhares de vidas
Esmagando, triturando.

Vidas…
Insignificantes de vermes,
Vidas
Divinas, sublimes
Com única medida.

Mas das vidas divinas
Uma música resssoa,
Uma cadência

Que, ecoando
Por toda a humanidade,
A vitória alcança…
Sobre o destino… eternamente!

Lúcio Miranda - Adeodato Barreto (1964)

“A educação espiritual do europeau, excessivamente materializado e dominado por essa falsa ideia de progresso, que se baseia numa exagerada mecanização da vida, é um dos principais remédios pela ética de Adeodato para os angustiosos problemas morais do momento actual. Isto é, aliás, o fundamento da doutrina de há muito pregada por uma plêiade magnífica de filósofos e pensadores, tanto orientais como ocidentais, que têm em Rabindranath Tagore e Keiserling os seus expoentes máximos dos dois hemisférios. Na realização desta doutrina não se trata é claro, de renunciar aos benefícios da civilização material regressando ao negativismo apático da velha filosofia búdica ou brahamânica: o que se procura, simplesmente, é temperar os excessos do materialismo europeu, intolerante e sectário, pela influência suavizadora do espiritualismo hindu, estruturalmente contemporizador e universalista. Neste sentido, a corrente reformadora de que Adeodato se tornou prosélito apaixonado, opõe-se ao tradicionalismo integralista de Henri Massis, Charles Maurras e alguns doutrinários portugueses cuja orientação conduz ao dogma da supremecia do Ocidente.

A espiritualização dos ocidentais, como é natural, reduz-se a um problema de cultura e, portanto, tem que ser resolvido por meios pedagógicos e por uma acção humanista, da qual resulte o nivelamento das raças e a comunhão dos povos. Assim se conseguirá um equilíbio social em nada semelhante ao da rasoira igualitária que a civilização europeia tem pretendido impor, pela força, no mundo. A sabedoria indiana, como há pouco se disse, não aconselha a uniformização, mas sim a unidade na pluralidade. Existe, de facto, um certo número de sentimentos e ideais que são comuns a toda a humanidade e que de modo algum contrariam os interesses nacionais, os matizes étnicos e a psicologia individual. É neles, pois, que se deve basear a doutrina da unidade, tendo como meio a sublimação de toda a força espiritual que se possa dizer universal e humana. Nesta ordem de ideias, como é óbvio, excluem-se os nacionalismos exaltados os imperialismos, os racismos, os privilégios de casta, os dogmatismos religiosos, os totalitarismos, aniquiladores de individualidade – e caminha-se firmemente para a democracia e para a paz, a qual, segundo muito bem observa Spinoza, não é a simples ausência da guerra, mas uma virtude que tem a sua origem na força da alma.

Eis o grande ideal pelo qual pugnou Adeodato, amando a sua terra e a dos outros; orgulhando-se da sua raça, sem preconceitos de nobreza; marcando a sua posição de homem livre sem preocupações de hierarquia; espalhando, finalmente, os tesouros inesgotáveis da sua rica espiritualidade, numa consciente obra de dignificação da personalidade humana”

(do ‘Ensaio biográfico e crítico do Prof. Lúcio Miranda, 1940)

Evágrio Jorge - Os Brahamanes (1967)

Francisco Luís Gomes foi um goês ilustre; nascido em Navelim, de Salcete, aos 31 de Maio de 1829. Formado pela Escola Médica de Goa, dentro dos curtos 40 da sua vida, foi parlamentar, economista, historiador e escritor.

Parlementar foi Francisco Luís Gomes, de 1861 até a sua morte em 1869, e nessa qualidade defendeu a liberdade, pugnou pelas regalias cívicas e fez a defesa dos humildes e desprotegidos. O seu carácter era de antes quebrar que torcer. Afirmou uma vez no parlamento:

“Tenho amor aos princípios. E se este amor precisasse de alguma recomendação, tinha nas palavras que me dirigiu um dos grandes homens desta terra. Há mais de dois anos, o Sr. José Estevam, abraçando-me ao Sr. Tomás Ribeiro, disse-nos estas palavras: “Rapazes, não sacrifiquem nunca os princípios aos homens. Não há homem nenhum que valha um princípio”

Foi deveras profético este seu vaticínio:

“As revoluções antigas derrubavam os feudos, os privilégios, os fortes, os poderosos; as revoluções passadas fizeram pequenos os grandes; as revoluções futuras hão-de fazer grandes os pequenos. As revoluções passadas eram os furacões que abatiam os castelos e os confundiam com o pó da terra; as revoluções futuras devem ser os terramotos que levantam as camadas ínfimas e as tornam primeiras. As revoluções futuras hão-de liberar as massas emancipando as indústrias, barateando as subsistências, propagando a instrução!”

Como economista, Francisco Luís Gomes escreveu três trabalhos de alto valor, que produziram ecos em Londres e Paris, sendo apreciados por economistas de nomeada como Stuart Mill, Michel Chevalier e Garnier. A Sociedade dos Economistas de Paris ofereceu-lhe um “fauteuil”, distinção que até lá era concedida apenas a quatro estrangeiros: Gladstone, Minghetti, Stuart Mill e Eobedz.

Como historiador e biógrafo, a sua obra em francês: “Le Marquis de Pombal: Esquisse de sa vie publique” é um monumento imorredouro à sua elevada noção de historiador, superior visão e belo espírito critico. Com um admirável poder de síntese, Francisco Luís Gomes – apreciou na 377 página deste livro, a vida portuguesa de 27 anos do governo de Pombal, nos seus mais diversos aspectos. É considerado ainda hoje o melhor livro que se publicou sobre o grande ministro de D. José, segundo o depoimento de escritores como Pinheiro Chagas, Oliveira Martins e Teófilo Braga.

E, finalmente, como escritor e humanista, o romance ‘Os Brahamanes’, cujo centenário de publicação racaiu em 1966, ficará para a eternidade, não só como o primeiro romance escrito por um goês, mas como uma obra prodigiosa dum grande luminar da nossa terra.

Escreveu-o o seu autor, não com grandes pretensões literárias, mas apenas para servir de veículo às suas ideias progressivas. E quais são estas ideias? Ei-las nas palavras do próprio Gomes:

“É necessário que os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, eternos na sua duração, sejam também universais na sua aplicação; que, traduzidos em instituições, leis e costumes, se estendem por toda a superfície do globo e penetram até as suas últimas camadas. Só então a regeneração do homem será com completa. Proclamando-o aqui em voz alta e desejando-o com toda a energia do meu coração, não cuido que seja seduzido por uma miragem social. E que o fosse, mesmo assim eu não ganharia pouco, porque é esta uma das tias utopias benéficas e esplêndidas que despertam com grande poderio o nosso ânimo, que elevam os miseráveis acima das suas misérias e os afortunados acima do seu egoísmo, e transportarem a uns e outros às alturas do Sinai, donde só se descortina a bandeira hasteada no cume do Calvário que é a bandeira da humanidade.”

O romance teve um extraordinário acolhimento da parte da impresa e dos literatos portugueses e foi logo traduzido para francês e inglês.

O grande escritor António Feliciano de Castilho disse dele o que segue:

“Elegância de estilo, vernaculidade de frase, originalidade de pensamento, facilidade de forma e um dizer sempre simpático e fluente são qualidades que distinguem essa mimosa produção e que fazem futurar em seu autor uma das mais fulgurantes estrelas da nossa plêiade literária”

O Dr. Agostinho Fortes apreciou-o assim no discurso que fez em Lisboa em 1929, por ocasião do centenário de Francisco Luís Gomes:

“Na realidade, não sei que mais admirar em “Os Brahmanes”, se a riqueza e o apropriado da linguagem, se o bem delineado e conduzido da acção, se a beleza e a magnanimidade dos conceitos, se a firme justeza dos caracters, se a grandiosidade do intuito. Há em “Os Brahmanes” o reflexo da magnificência da Índia, dessa Índia de sonho, dessa Índia do além, dessa Índia tão criadora literariamente que nos deu as grandes epopeias Ramaiana e Mahabharata, dessa Índia de Xacuntalá, de Sitá, o tipo mais idealmente belo e mais inexcedívelmente moral. A secção de “Os Brahmanes” é simples mas grandiosa, perpassando nela o tumultuar das paixões e ódios de raças que outros não há que se lhes assemelham em intensidade e rancor, e o desdém olimpicamente altaneiro das castas superiores, dum brâmane por um pária, cuja só única vista macula a alva pureza dimanada do Brahma. Mas, o consolo das almas bem formadas, todo esse ódio, todo esse desdém se esboroa e derrue (sic) à luz suavíssima da virtude e do bem, como o rancor que parecia insaciável de Magnod se liquefaz à luz quente da grandeza de ânimo de Frei Francisco, o missionário exemplar que edifica e converte”.

É certo que o romance perdeu hoje a sua actualidade. A Índia de 1966 é o pólo oposto da Índia de 1866. A Índia dum século atrás era um país decadente, prostrado, crucificado na cruz infame da subjugação. Mas mesmo então os seus faquires vaticinavam: “A pátria de Manu, depois de correr como uma moeda às mãos de Alexandre, Tamerlão, Albuquerque, Dupleix e Clive, deve voltar aos seus antigos senhores (os indianos)”.

As soluções que Francisco Luís Gomes, na melhor das intenções, propugnava para o renascimento da sua pátria, não se proveram de todo necessárias. A religião cristã e a instrução desempenharam, aí, um grande papel no ressurgimento da nossa gente. Mas duma forma geral e básica, foi o génio imorredouro da nossa cultura ancestral e as potencialidades latentes da nossa raça que se afirmaram mais uma vez. O século XX viu gigantes de pensamento e acção, como Ramacrishna e Vivekapanda, Dadabai Naoroji e Lokmanya Tilak, Radindranath Tagore e Mahatma Gadhi, Subhas Chandra Bose e Jawaharlal Nehru, viu esses gigantes surgirem do seu solo e levantarem o seu país do torpor em que se encontrava. A Índia está hoje livre e marcha triunfante na senda do progresso...

Escassos três anos haviam decorrido sobre a publicação de “Os Brahmanes”, e o seu autor que, como que pressentindo a morte, ia trabalhando sem descanso, sentiu-se exausto e combalido. Os médicos esgotaram todos os seus recursos.

Lembra-se então dos ventos da Pátria: “É meu inimigo este doce clima da Europa” diz, e embarca para a Índia.

Mas a Parca cruel atinge-o em pleno Mar Mediterrâneo. A notícia é recolhida com sensação e dor nos dois continentes.

Tomás Ribeiro cantou-lhe assim a glória:

“Morrer! Fugir do sol! Furtar-se à glória

Quem tão mimoso foi dos seus afagos

Quem, no abismo sem fim dos sonhos vagos

Passará a vida, a transbordar de luz”

José Rangel - Nave (1961)

Na amplitude que ressoa
Um homem sofre.
Na sua alma ecoa,
Qual dobre,
O gemido profundo
Do Mundo
Em quase agonia,
Na desesperança de ver pelo trágico dia
Raiar a bonança.

Uma voz se alevanta
Compungida, doce:
Orai meus irmãos,
Que se abeira a tormenta
Do martelo e foice.
Uni as vossas mãos,
Isoladas, trémulas,
Como do rosário as contas,
E então repelireis com ela
As temíveis afrontas.

E continua assim:
Ouvi e meditai bem:
Jamais se erguerão as defesas
Que reduzir-se logo não ameacem
A pó e cinzas
Se tiverdes um coração ruim.

Quando a voz se cala
E o silêncio impera,
Um grito estala
De peito que chora.

Senhor! Perdoai, Senhor
Este ser que pejo tem
De se confessar.
Aquela fé, cujo ardor
Dizia o infamar
Para a verdade, para o bem,
É mentira, é mentira!
Jamais procurou minorar
O sofrimento de outrem;
Só viveu de impostura,
Mais fome, mais dor
Pela terra semeando.

E o martelo vai batendo!
E a foice vai ceifando!
Céleres, sem luta,
É sempre vencendo,
Na sanguinária labuta!

Sunday, 19 June 2011

Augusto do Rosário Rodrigues - São Pedro, o bom pescador (1982)

Tu Simão, como Pedro conhecido,
Era um bom, ingénuo, pescador,
Teu peixe muito fresco, não tingido...
Regalo era da gente do arredor.

Hoje, este nosso mundo anda perdido;
A explorar, sem ter dó do comprador,
Vendem peixe estragado, apodrecido,
Exalando um nojento e mau fedor!

Apesar de tudo isto, certamente,
Estes burlões esperam cegamente,
Morar no Céu, contido, ao pé do Eterno!

Porém, os teus confrades... em verdade,
Alérgicos a toda honestidade,
Terás de vê-los longe... lá no Inferno!

Ananta Rau Sar Dessai - Divali do milionário (1963)

Hoje é o Divali, cada um ilumina a sua habitação.
Eu, não só iluminei minha, mas, até dos serviçais do meu avião.
Hoje é Divali, cada um tomando banho ostenta novos vestidos.
Eu, não só fiz vestir as minhas amantes, mas, até amantes dos meu tios, irmãos.
Hoje é Divali, cada um vai à Devalaia, para fazer um Namascar, a Deus.
Eu, porém, lancei alicerces duma nova Devalaia. Desperdício!, dizem ateus.
Hoje é o Divali, cada um dá presentes aos amigos e parentes.
Eu não só dei este, mas mandei dar inda nas escolas aos estudantes.
Hoje é o Divali, cada um prepara para Fòu, mil e um pratos.
Eu contratei dúzia de cozinheiros – calculem! – preparai tantos!
Hoje é o Divali, cada um convida para Fòu, os seus amigos e vizinhos.
Eu, não só convidei a estes – até chamei pelos jornais do pais, todos pobrezinhos.
Hoje é o Divali, cada um sente feliz em companhia de sua dama.
Eu estou felicíssimo – pois com dinheiro um “sem número” de damas me ama.
Hoje é o Divali, coração de cada um está cheio de alegria.
Mas, o meu está inundando dela – negá-lo grossa falsidade seria.
Hoje é o Divali, cada um se lembra com gratidão Xri Crisna que matou o Narakassur.
Mas, eu espero – aguardo com impaciência Xri Crisna que matará o Samajassur.
Hoje é Divali, cada um festeja a libertação da injusta prisão do opressor dos milhões dos inocentes.
O meu Divali, festejarei eu até aquele dia – enquanto não sejam libertos da miséria milhões dos entes.

Guilherme Santos - Misérias sem fim (1957)

A escuridão do quarto pesa sobre mim como se todos os fantasmas do meu passado se tivessem reunido para me esmagar!

Insónia dolorosa que me fatiga, que me desespera, que me oprime!

Quem teria dito que recordar é viver?

Será realmente?

Para mim, afinal, recordar é pior que morrer:

É sofrer de angústia e desilusão.

De um maço amarfanhado, que momentos antes ainda estava repleto, tiro um cigarro, o meu último cigarro. O fósforo faz-me pestanejar fortemente. Sopro uma baforada amarga de fumo e a sua mancha clara, espalha-se no ar e quase materializa na forma de um rosto branco, pálido, fantástico, um rosto de mulher que me fita, que sorri...

Docemente?

Escarnecedoramente?

Não sei precisar!

A sua imagem é tão forte, tão precisa, tão real que nem movo um braço sequer, receando dissipá-la ao menor movimento.

Ao longe, um receptor qualquer transmite um tango.

Oh, aquele tango!

Porque, precisamente, o tango que mais odeio, o que mais receio de ouvir?

Quantas vezes a enlacei fortemente, carinhosamente, ao som dessa melodia!

Quantas palavras doces e ternas eu murmurei aos seus ouvidos, quantas verdades, quantas mentiras, quantas falsas promessas, Santo Deus!...

E a vocalista, lá ao longe, vai pronunciando esses versos sentidos, chorados, que eu sei de cor!

“La comparsa de miséria sin fin desfila en torno de aquel ser enfermo que cedo há-de morrir de pena...”

De pena!

Que cedo há-de morrer de pena!

Morrer de dor!

Que tormento!

Tento tapar os ouvidos com as mãos e sinto-as trémulas e geladas!

Em vão! No meu subconsciente aqueles versos torturantes, continuam a martelar, compassadamente “morir de pena... de pena, de pena, de pena!...”

Oh sim! Quem dera poder morrer neste momento, poder apagar na mente esta visão que noite após noite me persegue, me tortura, me enlouquece!

Esquecer esse momento doloroso em que ela morreu.

Esquecer esse branco leito do Hospital, onde, pálida com a mão presa na minha, os olhos verdes repletos de saudades da vida que lhe fugia do amor, da sua vigorosa juventude em flor, eu beijei pela última vez, os seus lábios frios, rígidos e descorados!

“Morrir de pena!”

Foi assim que ela morreu!

De pena por não poder ser minha, de pena que eu lhe mentira cinicamente, de pena porque, quando a realidade surgiu esmagadora e monstruosa, num desespero, ela destruiu dentro de si, aquele elo, aquele pequenino traço de união que nos faria felizes para sempre, se ela pudesse ser minha... se eu não lhe tivesse mentido!

“Miséria sin fin,

Desfila...”

Pelo Mundo, a humanidade pervertida e cínica, faz desfilar misérias sem fim – No amor, na amizade, no ódio, na traição... miséria, sempre miséria.

No abortar de uma vida em gestação.... miséria, podridão, sangue, eterna miséria.

II

A dor aguda de uma queimadura nos dedos, faz-me despertar subitamente daquele torpor semelhante à morte!

O cigarro consumido, esquecido é arremessado longe, violentamente!

Fito o mostrador luminoso do relógio. Quatro horas da madrugada!

Hora perversa aquela!

Quantas vezes, àquela mesma hora eu a enlaçava ainda. Quantas vezes, às quatro da manhã, eu a beijava ainda com loucura, com frenesi, nos lábios húmidos e ardentes.

Oh meu Deus!... Quantas mentiras eu não disse às quatro da manhã?

- Amar-me-ás sempre?

- Sempre, sempre querida! Acaso não o sabes tu! Não o duvides meu para ti? O mesmo ardor nos meus beijos, o mesmo fogo apaixonado das minhas carícias?

Ela furtou-se subitamente ao abraço com que tentava envolvê-la e, numa voz estranha, repassada de profunda tristeza, murmurou:

- Sim! Sempre o mesmo, mas eu duvido de ti. Desculpa-me. Bem sei que te aborreço, mas pressinto que em breve te vou perder! O teu ardor!... Não será ele apenas a lógica e bem humana manifestação da natural tendência de um homem que deseja a mulher que confiadamente o ama, que se lhe entrega, que se não lhe nega nunca? Oh meu amor... e eu amo-te tanto!

Com uma lágrima tremeluzindo ao canto dos olhos, ela rogou com veemência...

- Casa comigo! Casa comigo!...

(Segue na página 3)

Porque evitas sempre a conversa quando te falo em casamento? Diz-me!... Eu porque duvido de ti. É esta a minha mágoa!

Calmamente, premeditadamente, como homem que sabe dominar os sentimentos íntimos, treinado na Escola Cínica da Vida e do Amor, cortei as suas lamentações...

- Mas... meu amor! Nunca disse que não casaria contigo! S... s.. im! Casaremos um dia, mas, por enquanto, é forçoso que esperemos. Só te peço que não duvides de mim nem da lealdade que sempre manifestei para contigo. Eu amo-te, ouve bem, amo-te com toda a violência do meu ser, com todas as minhas forças do meu coração! Tu és minha e eu,... eu sou teu, só teu! Ninguém, ninguém neste mundo poderá jamais separar-nos!

Ela levantou os magníficos olhos ainda húmidos e tristes e hesitou ainda, fitando-me bem de frente!...

- Mas...

Para iludir a pergunta crucial que se seguiria fatalmente se ela conseguisse falar, para esquecer e mascarar a minha repugnante falsidade, um beijo violento, esmagador, perturbante, uniu bocas.

E, de novo a enlacei, e, de novo, frementes, jovens, vigorosos, nos lançamos uma vez mais no louco turbilhão das carícias sem fim.

Depois... Cinco horas da madrugada!

A essa hora, que eu classificava como perigosa, ela protestava sempre, quando eu me erguia para me dirigir à casa:

- Porque te vias embora? Aborreço-te?... Fica. Fica mais um bocadinho!

Bocejando, enfadado, invariavelmente, às cinco da manhã, eu respondia:

- Impossível querida, impossível! Tenho de te deixar agora!

- Mas impossível porquê? Porquê, Santo Deus?

Impacientava-me então e respondia já com certa rudeza na voz que não perguntasse mais nada, que as mulheres eram todas iguais e que se ela não confiasse cegamente em mim, então era melhor encerramos o assunto com um adeus eerno! Depois mudava de voz e suavemente, dizia-lhe uma razão qualquer de ponderar e pedia-lhe com meiguice que fosse boazinha, tal como eu sempre desejava que ela fosse para mim!

Finalmente, ela suspirando hesitante, acabava sempre por ceder, conformando-se, livrando-me momentaneamente da sua perigosa curiosidade feminina!

III

Cinco e meio da manhã.

Cuidadoso regresso a casa, sempre surpreendido pela esposa desperta!

Depois, novas perguntas, novas recriminações justíssimas, sempre repelidas com o mau humor e a vivacidade dos que não têm razão, dos que labutam na mentira, na perversão, na infidelidade, na traição aos mais solenes dos solenes juramentos.

E depois?

Depois, o silêncio amuado, o silêncio torturante que pouco durava porém, porque, há sempre no homem, qualquer coisa que pode vencer a razão de uma mulher que ama: precisamente, o amor sincero que essa mulher nos dedica e do qual, nós, fazemos a nossa força, a nossa couraça, o instrumento paradoxalmente protector das piores perfídias e deslealdades.

E depois... bem... um beijo quente, falsamente ardente, cópia estereotipada daqueles que se deram momentos antes noutro quarto, noutra mulher e, a seguir, uma comedia de amor, tardia, olheirenta, desvairadamente cansativa.

E de novo, o silêncio!

E depois, outra noite que desce a seguir ao dia que passou célere, outra noite igual à outra... outra e mais outra.

Um mês, seis meses, um ano, dois anos!

E depois?

Depois, a tragédia, o drama!

Miséria da vida!

Um corpo que se desfaz em sangue puro, incontível, torrente vermelha e trágica de glóbulos rubros e brancos, brancos e rubros!

Morte! Desolação! Crime! Consciência!

E depois?

Depois da morte? A vida!

A vida?

Sim! A vida, prenhe de recordações dolorosas é certo, mas recordações fugidias que, uma nova mulher, um outro amor... depressa atiram para o olvido.

A vida... O que é a vida afinal?

Um drama a que se segue uma comédia, uma tempestade que amaina e é substituída pela bonança!

A comédia da vida!

A comédia do amor!

Novas juras se hão-de trocar, novas mentiras se hão-de dizer, novos lábios se hão-de beijar, novos afagos, novas sensações... Miséria.

E a vida não pára, e a vida se renova constantemente!

O que é a vida afinal?

Vida – turbilhão de miséria

Vida – miséria sem fim

Maria Juliana Cordeiro Monteiro - Porquê (1965)

Cães lazarentos,
Cães danados,
Vagueam pelas estradas,
Sem pão nem patrão,
Pobres animais,
Símbolo da fidelidade,
Como são descuidados,
Pela humanidade!
Quem deles tem compaixão,
Se, doentes, sem carinho,
Sem um osso para roer,
Vadios de profissão,
Vão alastrando, sem querer,
Terror e morte
Pelos povoados
Superlotados?
Almas penadas
Errando pelos caminhos,
Libertinos,
Ao Deus-dará,
A cumprir as penas
- Vejam só –
D’alguma raposa má,
Sua tetravó,
Farejam no lixo
- Tristes bichos! –
Mas em vão,
À procura de uma côdea de pão.
Se não há
Para a gente,
Que se gasta e moureja,
Um bago de arroz,
Que se veja,
Porque deixar sem dono,
E, ao abandono,
À solta pelas vielas,
Essa malta de sentinelas
De olhar tão humano?!
Porque acrescentar,
Inconscientemente,
Ao calvário da nossa gente,
Mais uma tortura,
Mais uma agonia
Mais um mal sem cura
Aos males de todos os dias?

Telo de Mascarenhas - A carta de Rendição (1974)

Haviam decorrido muitos anos e meses de vida monótona de prisão quando Dezembro chegou com seus frios e névoas e notícias vagas nos jornais relatando alguns incidentes em Goa.

Os jornais de Lisboa do dia seguinte davam, com fundo ressentimento e raiva incontida, a notícia de concentração das tropas indianas junto da fronteira de Goa, o que fez criar no meu coração a esperança de que havia chegado o princípio do fim. Soube-se também que os oficiais superiores e os comandantes do exército tinham fugido, tomados de pânico, para Mormugão, à aproximação das tropas indianas, destruindo as pontes e minando as estradas. Soube-se mais que a fragata “Afonso de Albuquerque”, quando uma canhoneira indiana abriu fogo fizera marcha à ré e fora varar na praia rochosa de Dona Paula.

No entanto, Salazar, fremindo de raiva, mandava constantes ordens pela rádio ao Governador Geral de Goa para resistir até ao último homem. Mas o Governador-Geral e o Comandante Militar não obedeceram às ordens do seu patrão Salazar, e renderam-se ao Comandante das tropas indianas para evitar o holocausto de inocentes vidas humanas, tanto dos militares portugueses como dos civis goeses para poupar Goa de ser reduzida a destroços e a terra queimada como Salazar sempre ameaçara nos seus discursos, caso os portugueses tivessem de sair de Goa.

Foi o Mgr. Gregório Magno Antão, um estrénuo nacionalista que, desprezando todos os perigos, atrevessou o rio Mandovi às 8 horas de noite de 18 de Dezembro de 1961 e entregou ao comandante das tropas indianas que haviam entrado em Goa, Major Shivdev Singh Sidhu, a Carta de Rendição do comandante do exercito português, Major Acácio Tenreiro.

Foi o pai do malogrado Major Shivdev Singh Sidhi (morte à traição após a rendição das tropas portuguesas, na noite de 18 de Dezembro, pela guarnição do Forte de Agoada, quando ia libertar os 35 presos nacionalistas na iminência de serem chacinados segundo a ordem dada pelo comandante do forte ao seu imediato, alferes Pinto), quem me mandou a fotocópia da Carta de Rendição, logo após o meu regresso do degredo, redigida nos seguintes termos:

“Cidade de Goa, 18/12/61

O Comandante Militar da Cidade de Goa declara que deseja parlamentar com o Comandante do exército da União Indiana com respeito à rendição.

Nestas condições, as tropas portuguesas devem, imediatamente, cessar fogo e as tropas indianas proceder de igual modo com o fim de evitar a chacina da população e a destruição da cidade. O Comandante; (as.) Acácio Tenreiro (Major)”

Quando a notícia da rendição iminente de Goa chegou a Lisboa, foi convocada com urgência a Assembleia Nacional e um Adv. Goês escolhido para Deputado pela União Nacional, o Partido único durante o regime de Salazar, preferiu um longo discurso cheio de jargons, convencido de que falava uma linguagem correcta e parlamentar e disse que “Nehru queria fazer fita”, pelo que ficou sendo conhecido entre os presos de Caxias por “Dr. Fita”. E reeditando a “His Master’s Voice”, acrescentou: “Qualquer de nós pode vir a ser Presidente da República. Todos nós – Hindus, Cristãos e Muçulmanos somos a favor da soberania portuguesa em Goa”, e outras bojardas de igual calibre.

Naquele dia, eu e Mohan Ranade saudamo-nos, mutuamente, no recreo com dois dedos em “V” significando Vitória.

Passados dois dias os jornais e a Rádio davam notícas, ansiosamente esperadas, de que as tropas portuguesas se tinham rendido em Goa. Senti-me exultante de alegria, de igual modo os meus companheiros que me felicitaram calorosamente. Logo depois daquela notícia, que se espalhara pelo Forte como um rastilho de pólvora, eu e alguns companheiros fomos transferidos para a sala onde se econtrava Mohan Ranade. Abraçamo-nos cheios de exaltação. E foram mais felicitações dos meus novos companheiros da sala.

Na tarde nevoenta de fins de Dezembro eu observo da janela da nossa sala as folhas amarelecidas, de que o Outono se esquecera, caindo dos árvores. E eu penso que, de mesma maneira, o poder colonial retrógrado, obsoleto e corroído tinha caído em Goa, nesta era de emancipação dos povos e de autodeterminação – o mais sagrado direito do homem.

(extraído de Quando as mangueiras floriram, quase-memórias)

RV Pandit - À espera de Rama (1967)


As minas
Fizeram de Goa
Não sei quê.

As pedras
Em ouro transformadas?
Não sei.

Mas uma coisa sei.

Homens, que anos atrás,
Eram de oiro
Hoje estão feitos pedras
Como a Ahiliá
À espera de Rama!

(“Ahiliá: the reference is to Epic Ramayana. At the curse of her hushand Ahilya was turned into s stone. But when Lord Rama’s feet touched the stone during his sojourn through Dandakaranya forst, Ahilya regained her original forma and came to life again)

Anonymous - Zaiú (1960)

Quando as canhoneiras, antigos barcos de Guerra navegando a vela e a vapor, aportavam ao torrão de Goa, após uma longa viagem de alguns meses e ali estacionavam muitos anos ancorados no caudaloso Mandovy, a marinhagem instalava-se na cidade de Pangim, a caminho de Campal e próximo a um denso palmar que se estendia para alem de Santa Inês, onde casitas, de branco pintadas, desseminadas, se escondiam sob a amena frescura e sombra das longas palmas dos coqueiros.

Habitava essas modestas moradias, que do exterior nos pareciam desertas, uma humilde casta hindu que se dedicava ao culto da deusa Lakshmi. As mulheres conhecidas por “bailadeiras”, alem de cuidarem da nascente Cabeça de Vaca, e executarem as sagradas danças junto das suas divindades e nas festas nupciais gentílicas.

Em missão de soberania e animando o Mandovy lá se encontrava então a canhoneira “Sado” em suas graciosas linhas, e para além das serranias dos Gates, cuja majestosa silhueta se divisa do ancoradouro, o domínio altivo dos ingleses.

Na época das chuvas, que coincide com o calorento estio, a canhoneira despia-se dos seus mastros e cobria-se de um toldo de olas. A tripulação então passava os seis meses de invernada nos quartéis e a oficialidade ia habitar, geralmente em grupos de dois, as casas gentílicas, no limite daquele palmar, ladeando o magnifico largo de Misericórdia aonde, por vezes, se efectuavam jogos desportivos.

Não poucas vezes acontecia, na minha juventude e após as lições para o dia seguinte, passar as tardes na residência desses oficiais. Quanto à alimentação elas seguiam o regímen receitado pela sua religião. Num meio de submissão a obediência a que foram criada elas sabiam ser discretas, conservando assim a necessária harmonia naquele ambiente.

Não seria tão jovem como as demais mas possuía o encanto de boas maneiras e um metal de voz, de franco gargalhar, que a todos enlevava. Comunicativa, não conhecendo obstáculos pois, tudo resolvia por sua iniciativa, e o trabalho domestico, era geralmente feito ao ritmo do seu cantar.

Naqueles meus últimos meses em Goa meu pai havia sido generoso para comigo e estendia-me com especial paciência.

Na noite que lhe disse adeus ouvimos a triste história da amorosa Zaiú, naquele anoitecer e na calma do palmar, quando as andorinhas deixavam de rondar e o morcego iniciava o seu esvoaçar misterioso, àquele mesma hora em que o horizonte se tingia de olaia.

“Zaiú era, como tantas outras como nós uma desditosa bailadeira. Elogiam, em segredo, o nosso cantar sagrado, o nosso bailar e o amor mas, jamais o fazem em público, pois seria desprimor aos olhos do mundo. E a nossa sina, o nosso destino. Já no berço nos coroam com a grinalda de singelas flores amarelas de “fulo” distintivo da nossa triste herança, da nossa humilde e infeliz casta,

O templo estava em festa, todo iluminado, todo cintilante de luzes e cristais numa atmosfera de essências raras e inebriantes. Um lindo conjunto de bailadeiras, em perfeição absoluta, harmonioso, o que de melhor se viu então, nos encantava, elevava-nos o espírito. Zaiú, a estrela da festa, toda vaporosa, esvoaçando nas ondulações musicais, parecia divagar, sonhar em um reino distante, em um mundo maravilhoso onde todos se amavam e se respeitavam sem distinção de castas, almas de infinita bondade donde brotavam felicidade, dedicação e amor. Ao despertar daquele sonho de encanto, suavemente, nos seus olhos semicerrados ainda, uma imagem de homem do mar se desenhou no meio daquela turba de gente, todo interessado, mesmo maravilhado pela devoção daquele bailar sagrado. Novo período e foi assim o começo duma dedicação bem funesta, onde lágrimas não chegaram a aflorar, mas o coração sangrava nela, preferindo dá-lo a morta que tê-lo dentro do seu peito em constante soluçar.

Dois longos anos passaram sobre eles irmanados de uma dedicação sem igual. Pontualmente, finda a labuta de bordo, alie estava junto dela como se outra coisa não existisse no mundo. Zaiú bem sentia ao fundo da alma o afecto daquele rude marinheiro que ninguém mais tinha a não ser sua mão, uma pobre velhinha que lhe escrevia, nele pensando noite e dia.

Chegara o fatídico dia, dia que todos nós afinal, tememos. Angustiosos momentos esses que nos toldam o coração de amargura. Aquele barco recebera ordens de regressar. De abandonar as águas de Goa.

Bem quisera ele ocultar aquele verdade, igualmente tão crua para si. Mas, não se sabe como, ela o soube e na véspera, como aqui neste momento connosco, juntos pela última vez, lhe falou, sem uma lágrima furtiva que viesse toldar o ânimo do seu companheiro de tantos anos.

- Escusas de me convencer do contrário. Vais deixar-me. Há dias que trago no coração esta profunda mágoa. Resta-me pedir-te um favor, um favor apenas já que vais para tão longe para junto da tua mão. Quero que me dês esse crucifixo, preso a camisola, que ela te deu. Desde este momento abraçarei a tua religião converter-me-ei à religião de Cristo.

E, na madrugada seguinte, noite ainda, abalou, para as dunas de Gaspar Dias. Ali, serena, com a alma a chorar e a morte no coração, ergue alto os braços como numa oração à passagem do barco que, ligeiro, se escondia na neblina, em direcção ao mar. Ainda a alva não rompera e já a pobre Zaiú de olhar fito na esteira do barco longínquo, afogava o seu desgosto e paixão naquelas águas tumultuosas, que se abriam para receber aquele lindo corpo de mulher que soubera amar. Dias depois acharam o seu cadáver. Presa ao ‘choly’ vinha a Cruz do ente amado, bem junto ao coração.

- É assim o amor de bailadeira – concluiu a Mogá. E tirando da cintura um anel com uma safira – adquirida, por certo, com o dinheiro que eu lhe dava – amorosamente, bem meigamente no seu triste olhar, introduziu-me no dedo, dizendo com firmeza - para que nunca te esqueças de Mogá. É a última noite que tu passas na tua Terra. Um dia regressarás. Voltaremos a ver. Adeus, adeus. E fechou-se na sua humilde alcova.

Já distante, volvi os olhos em direcção aquela casa, então toda manchada de prata pelo esplendor dum luar maravilhoso.

Saturday, 18 June 2011

Laxmanrao Sardessai - Kesovahsuta (1966)

Nasceu em 1866, no Distrito de Ratnagiri, numa família pobre, o maior poeta das letras maratas. Os fracos recursos da família não lhe permitiam a instrução superior. Mesmo o curso secundário pôde conclui-lo à força de grande tenacidade e sacrifícios. Por mais de doze anos, o poeta levou uma vida errante, à busca de algum serviço condigno. Em 1903 foi nomeado mestre-escola em Dharwar e morreu em 1905, vítima de peste bubónica. Mas, no curto espaço de 14 anos, escreveu mais de 130 poemas que o consagraram na literatura marata pelo alto quilate das suas produções, como fundador duma nova escola, cujo impacto, volvidos setenta e cinco anos, ainda hoje a geração moderna admite e reconhece com suma gratidão.

Kesovahsuta é o pseudónimo de Krisnaji Kesova Damle que iniciou na literatura marata uma era nova. Podemos chamar-lhe a era romântica. Libertou de inúmeras peias o espírito poético: abriu-lhe novos horizontes no tocante ao conteúdo e à forma. Introduziu na poesia o subjectivismo, até então ignorado ou desprezado pelos seus contemporêaneos.

A sua forte personalidade poética, agressiva, revolucionária, iconoclasta, contrasta com a sua modesta humilde, silenciosa, individualidade física. De extremas condições adversas em que se debateu, saiu e gradualmente se tornou nítida a sua personalidade que açoita como o vendaval o conservantismo, o dogmatismo, os preconceitos e costumes sociais, concertos poéticos que atrofiavam a alma social e reduziam o indivíduo à situação de escravo, negando-lhe a liberdade da acção, do pensamento e do sentimento.

Reformador Social

Pode-se dizer, por isso que Kesovahsuta foi arauto das novas reformas sociais que, mais tarde, haviam de sacudir a nociva poeira do obscurantismo em que estava submerso o espírito social e individual. Apareciam, então, sinais de resitência ao domínio britânico. A sociedade despertava para o novo influxo das ideais democráticas, disseminadas pela literatura inglesa. Despontavam no horizonte novas estrelas de primeira grandeza, como Tilak, Ranande, Agarkar. Fermentavam novas ideias no meio social. Foi Kesovahsuta que, através dos seus versos, deu expressão à nova corrente da renascença e reformismo.

As suas poesias como ‘Tutari’, ‘Nova Shipayee’, ‘Gotam’ e ‘Sfurti’ são gritos de revolta contra o status quo social. Os males sociais forneceram-lhe temas favoritos. Ali o poeta cresce em proporções gigantescas. Não é um indivíduo atrelado, como bois à carroça lenta, morosa da sociedade. É um ente livre, fogoso, haurindo a sua força do potencial do indivíduo que na Europa acabava de criar revoluções. É o espírito da renascença que, embora tarde, chegava às praias do nosso subcontinente, sacudindo, em diversos pontos, a letargia e a inércia em que estava imerso o elemento pensante do pais. O idealismo do poeta, derivando dum subjectivismo dinâmico dava-lhe uma visão extraordinária que antevia para todos os seres sociais um paraíso. Mas o seu subjectivismo tinha um fundo metafísico que nos lembra Antero de Quental. Há nas suas poesias como Padyapangti e Sandyakall arroubos de desespero, futilidade da vida. Mas esta faceta não é tão predominante como a do reformador social. Há na sua personalidade a fusão de Guerra Junqueiro e Antero de Quental. Às vezes o poeta sobe para as regiões do incógnito e problemas eternos como Deus, a Morte, a Vida, atormentam o seu espírito e, à maneira dos Rishis antigos, tenta dar-lhes solução. Então as suas produções tornam-se místicas como “Zapuraza”, “Matari” e “Harpalem Shreya”.

Génio Criador

A sua máxima contribuição para a poesia, em geral, e para o pensamento criador em particular, foi a consciência nítida do imenso poder do artista, consciência que ele comunicou à sua geração e às vindouras, com coragem e ardor imprevistos. Esse pensamento transformou o poeta que se julgava um metrificador passivo, um ente estéril , numa força dinâmica, num ente invulgar que, à força da sua visão, lobriga nas vulgaridades da vida significados vastos e profundos, capazes de comunicarem ao indivíduo imensas forças.

“Rangoli”, “Satariche Boll”, “Ammi Khon” e muitos outros poemas são a prova da minha afirmação. Neles o poeta canta hinos ao génio criador. Daí a sua inteira atitude e seus variados problemas. Graças a ela, o metrificador marata subiu do seu pedestal rasteiro e tornou-se um poeta, um visionário, um escultor das almas. É a filosofia do romantismo, reflectida, pela primeira vez, nas letras maratas. O individualismo, cercado da aureola do romantismo, imprimiu às suas criações poéticas um aspecto radiante, inteiramente novo. Há nelas um repto à nossa humanidade dormente, passiva, uma ânsia vigorosa por uma vida melhor em que o indivíduo modela o seu meio, segundo as suas aspirações.

Seis meses antes da sua morte repentina, o poeta escrevia a um dos seus amigos e admiradores uma carta em que este lhe pedia a sua opinião sobre uma poesia que lhe enviara para a sua apreciação. Dou a seguir passagens mais importantes desse documento que é como o testamento da sua fé:

“A poesia é como o raio celeste. Os que tentam atingi-la, são, na sua maioria queimados. Sou um deles. Aconselho-te, por isso, a não alimentar ilusões. Queres dissipar as trevas do mundo com o raio do teu talento? Se sim, vê se o teu coração está despertado ou melhor constrangido, despedaçado. Porque, só então, isto é, quando o raio, partindo do coração, penetra a inteligência e se reflecte no mundo exterior, se abre o caminho da perfeição. Doutra forma, a poesia será como lâmpadas pintadas no papel, com as quais magotes de voluntários pretendem guiar nas trevas os transeuntes. Queres um íntimo prazer espiritual? Não há dúvida que tal prazer é a melhor recompensa da poesia. Mas de que serve o prazer que deriva da coceira? São desta natureza todos os prazeres materiais. Só nós trazem a desilusão. É pois necessário pensar seriamente na maneira como poderás desfrutar o verdadeiro prazer espiritual.

P.S. Aspiras a ser grande? Se sim, a tua aspiração deve ser orientada pelos ditames da bondade. E nota uma coisa. A nossa bondade reflecte-se melhor na expressão dos rostos dos nossos pais e de todos os entes, pequenos ou grandes, da nossa casa”

Eis uma das melhores poesias de Keshavut “Nava Sipay”, em que se revela na sua plenitude revolucionária:

“Guerreiro da Era Nova”

Jovem e bravo, sou o guerreiro da era nova;
Sou indomável na peleja,
Não sou brâmane, não sou hindu,
Nem sou sectário de qualquer crença.
Miseráveis são os que tentam
Levantar barreira em volta do campo da universalidade.
Sou voraz
E não me satisfazem as migalhas.
Não quero ser do poço a mesquinha rã
E não tolero que me fechem,
Com a sebe farpada, a vasta seara,
Onde quer que eu vá,
Vejo os meus irmãos
E vejo em todas as casas
A imagem da minha morada
E em toda a parte, sob os meus pés,
A terra relvada,
E por cima da minha cabeça
O firmamente azul,
E a sombra das árvores
A infância, bela e radiante,
E no solo flores graciosas
E à sua vista a minha alma
Vibra alvoroçada.
São minhas, todas elas,
E sou delas, de igual maneira.
A mesma corrente nos une a nós.
Sou o guerreiro indomável da era nova,
Em mim, adoro-me a mim mesmo,
A ninguém mais!
Vejo em mim o universo
E o venero.
Eu ignoro o termo “ego”
E eles, os ignorantes, limitam-no
E convidam tempestades.
Para mim são iguais o pequeno e o grande,
Iguais o bom e o mau,
Desaparece a noção de perto e longe,
Para mim tudo é grande e bom
E tudo está perto.
Sou o arauto da era nova
Que procura no mundo estabelecer
O reino da paz.

Cyrano Valles - Não eras assim… (1966)

Tu não eras assim,
Polida e triste,
Qual rosa esmaecida.
Brotava em ti
Uma alegria sem fim,
Mas agora - quem diria? –
Teus olhos claros
Com o riso das estrelas,
Amorteceram
E, fitos no sol poente,
Contemplam
Não sei que visão demente.

Quem tumbou
O teu sonho alado?
Quem magoou
Teu coração enamorado?

Chora.
Deixa correr as lágrimas.
O pranto é um bálsamo
Para todas as mágoas;
É a redenção dos infelizes,
Feridos pelo áspero destino.

Friday, 17 June 2011

BB Borkar - Isto não é liberdade (1963)

Quando o espírito anda doente
E do medo é vitima a mente,
Quando a mesma cadeia do passado
Traz o nosso futuro encadeado –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando verdadeiros demolidores
São saudados como benfeitores,
Quando à sua porta acorrem,
Pedindo benesses, homens de bem –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando indefinidos camaleões
Mudam de cor segundo as ocasiões,
E, por amor dos votos, açulam as multidões,
Excitando as mais ignóbeis paixões –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando incônscios e infiéis escritores
Envenenam a alma dos leitores,
E, deturpando habilmente a verdade,
Tornam atraente a falsidade –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando massas amorfas e escravizadas
Beijam os pés que as trazem amachucadas,
E não se pejam de entoar louvores
Para honrar e adular os seus opressores –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando os valores próprios são deprezados
E só alheios tesouros altamente estimados,
Quando refugiando-se à sombra de estranhos,
Se busca com afã o poder, o mando –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Quando só o deus ventre é adorado
E não passa de irrisão o trabalho sacrificado,
Quando se erige em norma não se comprometer
Para, à custa de outrem, paratisicamente viver –
LIBERDADE? ISTO NÃO É LIBERDADE!

Carmo Azavedo - O langotim contra as calças: uma luta de classes (1975)


Quando, por fins de 1963, se constitui uma frente anti-integracionista pela amalgação de cinco partidos, todos chefiados por cristãos, soba  denominação de “Goeses Unidos”, tendo-se formado, da outra banda, idêntica frente, por idênticos processos, a Maharastravadi Gomantaka Sangathana, liderada por um hindu, alegou-se, e não sem alguma razão, posto que as duas frentes ou, se quiseram, organizações partidárias unificadas, fossem não exclusiva, mas predominantemente constituídas de membros de uma só comunidade, que os dois agrupamentos rivais eram essencialmente comunalistas.

Mas tarde, quando na primeira Assembleia Legislativa, se verificou uma cisão nas fileiras dos Goeses Unidos, formando-se dois grupos dentro do partido, o Grupo Sequeira e o Grupo Furtado (ou melhor, Loyola Furtado), não pôde deixar de se dizer, e de igual modo não sem alguma razão, embora a clivagem não tivesse seguido inteiramente a linha da casta, que a comunidade cristã de Goa voltara a ter dois partidos ou grupos castistas, como no passado, com  o Partido Ultramarino, centrado à volta de “O Ultramar” e o Partido Indiano, tendo por centro “A Índia Portuguesa”, aquele sob a chefia dos Costas e este dos Loyolas.

Felizmente, quando se deu, na segunda Assembleia, novo desdobramento, sob a liderança do sr. Orlando Sequeira Lobo, este preferiu apelidar de “progressivo” o seu grupo a baptizá-lo com o seu próprio nome e não chegou a formalizar-se a separação a ponto dos dois grupos disputarem as eleições imediatas como agrupamentos rivais, não só com programas políticos, mas também com símbolos diversos, como da vez primeira.

Melhor ainda, desta feita, como a apagar, de uma vez para sempre, o estigma do comunalismo, no partido anti-integracionista, temos dois grupos, devidamente reconhecidos, sim, com símbolos diferentes e de novo levando o nome do respectivo chefe, o Grupo Naique e o Grupo Sequeira, opondo as próprias denominações dos grupos rivais um categórico desmentido ao carácter supostamente comunalista do partido anti-integracionista.

Mas – ocorre perguntar – vai agora o comunalismo ou o castismo ceder o lugar à luta de classes? É o que, pelo menos, parece deixar ver o que se passou na recente eleição para o Conselho Municipal de Pangim pelo círculo de Ribandar, em que a disputa não foi entre os dois partidos rivais, os G.U. e a M.G., mas, por estranho que pareça, entre os dois grupos de primeiro partido, o Grupo Naique e o Grupo Sequeira, uma disputa frontal, um duelo, em que não houve terceiros, nem de outros partidos quaisquer, nem independentes.

Dizem-me – diss-me, entre outras, pessoa da maior respeitabilidade, antigo partidário de lealdade a toda prova ao sr. Jack de Sequeira, ora totalmente disiludido com a sua egocêntrica liderança – que o slogan na eleição de Ribandar não foi, como seria de esperar, “Sequeira” contra “Naique” ou “Duas Folhas” (o símbolo dos anti-integracionistas no Opinion Poll) conta “Mão””, mas – imaginam o que? – “Langotim contra Calças” (Kastti versus Pants), representando um dos candidatos, o sr. Emerciano Pereira do grupo Sequeira, os pescadores de langotim e o outro, o sr Luís Valentino de Sousa do grupo Naique, a pequena ou media burguesia de calças.

Esta luta de classes não terá, eu bem sei, o significado marxista da expressão, com todas as suas implicações sociais, económicas e politicas, tais como as vemos teorizadas na famosa obra Das Kapital de Kar Marx; nem o sr. dr. Jack de Sequeira, que eu saiba, teria virado comunista, depois de não só ver desfeito o seu sonho doirado de ser ministro-chefe, à testa de um Governo dos Goeses Unidos, mas até perdido o título de Chefe de Oposição no órgão legislativo pela separação dos legisladores do Grupo Naique.

A luta de classes, que traduz o slogan “Langotim contra Calças”, não tem, como acabei dizer, o significado e o alcance que tem no vocabulário marxista. Mas não deixa de ser uma luta na mesma, luta do langotim, dos “langotinados”, se me é lícito cunhar esta neologismo a modo dos “descamisados” de Evita Peron, a plebe, empregado o vocábulo sem sentido pejorativo ou ofensivo, contra as calças, a burguesia white-collard, de colarinho e gravata ou, melhor, de acordo com os tempos de bush-coat ou balalaica – em uma palavra, uma luta das massas contra as classes – masses against the classes.  

Thursday, 16 June 2011

Alfredo Bragança - Parede Humana (1965)

Chovem trovoadas,
Ribombam canhões,
Atroam os ares,
Gargalhar das metralhas,
Eis arrancadas,
Monstro amarelo
À porta blindada!

Clamam trombetas,
Estandarte tricolor à frente,
Saem Jawans para frente
Sangue a arder
Fúria e sanha,
Com o inimigo à porta.

Cá nos lares,
Choram esposas e mães,
Filhos e filhas também,
Pais a terra defendem,
Sorri à Índia-Mãe.

Põem-se a coçar a cabeça
Os estadistas,
Matutam os cientistas e artistas
Pensam alto e baixo
As camadas congressistas,
Comunistas e socialistas

Será pó e nada
Esta estremecida terra?
Será escura a luz abençoada
Que envolve a terra?
Dançarão esqueletos
Sobre o bonito soalho
De cinzas e lava coagulada?
Romperão vulcões
Com fúria e fogo,
Dançarão esqueletos
A este macabro jogo?
Formarão estátuas de cinzas
No Campo de Liberdade?
Saltarão pedaços de terra seca,
Sem plantas e árvores secas,
Com esqueletos dobrados
Chupando-lhe as raízes,
Sem água nem mágoa,
Cena inglória e tétrica?
Não poderão chorar
Os farrapões dos viúvas?
Morrerão os ecos
Dos dilacerantes gritos
Dos pobres órfãos
Nas suas gargantas secas?

Será arrasado
O templo de Liberdade,
Onde vão rezar
Camadas de ordem vária?

Não poderemos comer
Do pão de cada dia,
Das cinzas de Nehru?
Será fogo, trovão,
Cinzas, pó e nada
A nossa terra amada.

Clamam trombetas,
Estandarte tricolor à frente,
Saem Jawans para a frente
Sangue a arder,
Fúria e sanha,
Com o inimigo à porta.

400 milhões
Esquecem Punjab,
Gujerate e Kerala...
De Assam à Madrasta,
De NEFA à Goa,
Todos parede humana
Todos parede humana
Avançam os Jawans.

Máquinas correm céleres,
Suam os irmãos de noite,
Mais ritmo, mais trabalho
Que o inimigo amarelo
Martela a porta.

O Himalaia
De 400 milhões
Derretem suor e neve branca,
Formam um bloco,
E derretem o amarelo!

Vem o verde traiçoeiro
Arranca do Kutch
Um pedaço
Rempo com ímpeto
A artilharia
Faz-se fogo e aço.

Avançam os Jawans,
Contra o verde inimigo.

Oram multidões,
Os 400 milhões
Nas naves
Do templo da Liberdade.

Os filhos à guerra
Os pais à guerra,
Choram irmãs,
Esposas e viúvas,
Sorri a Terra-Mãe Índia.

Evágrio Jorge - Xacuntalá (1965)

Xacuntalá é filha de um Rixi e de uma Apsará. Mestre Cannvá, encontrando-a abandonada numa floresta logo que nascida, recolhe-a no Eremitério e toma-a para sua filha adoptiva. E aí ela cresce junto de duas companheiras da mesma idade, de quem se torna muito amiga: Anassuiá e Priamvadá. Caçadores infestam o bosque do Eremitério e matam uma gazela que amamentava um filho. Xacuntalá encontra o pequenino animal, órfão de mãe, e cria-a enternecidamente, como faria e um filho. De uma vez, em que as três amigas regavam as flores que Xacuntalá ama como se fossem irmãs, Anassuiá prediz-lhe que ela encontrará uma dia um homem poderoso que o fará muito feliz, mas o seu horóscopo reza que um infortúnio pesa no seu destino. Mestre Cannvá, o pai adoptivo de Xacuntalá, vai em peregrinação aos mais afamados templos impetrando os deuses para que esconjurem aquele mau signo. O Rei Dushianta anda a caça, perto do Eremitério. Quando apontava a flecha à pequenina gazela, é surpreendida pelo sacerdote do Eremitério que o exorta a não matar o dócil animal. O Rei cede aos rogos do sacerdote, e este augura-lhe que será um dia, ele ou um filho seu, um Monarca Universal. Encantado com a formosura de Xacuntalá, o Rei resolve não sair do Eremitério. O Rei está maravilhado. As três amigas oferecem-lhe frutas e flores, bailam para seu recreio. Xacuntalá, sente que, no seu coração virginal, desperta, pela primeira vez, uma emoção desconhecida. Priamvadá revela-lhe que ela está apaixonada pelo Rei e diz-lhe que a forma de saber se o Rei está também apaixonado por ela é fazer um estrofe. Xacuntalá escreve, com a ponta da unha, numa folha de lótus, a seguinte poesia, que Priamvadá dependura duma árvore:

“Não Sei
Que sente o teu coração
O meu
Ficou preso a ti
Da mesma maneira

Que aliança ao lodão
A Vanadassini
A Mangueira
Desde a hora
Em que te vi”

O Rei lê a poesia e declara que está apaixonado por Xacuntalá. Para penhor da sua constância, dá-lhe o seu anel que é um talismã e tem o poder mágico.

O rei casou com Xacuntalá segundo o rito védico, para o qual nada mais era preciso que a vontade mútua dos nubentes. Xacuntalá é feliz. As suas companheiras participam da sua ventura. Decorrem suaves as horas no Eremitério. Ao despontar do sol, rezam à Súria a oração da manhã. O rei pinta o retrato de Xacuntalá. Um mensageiro, porém, da Corte, vem, inesperadamente, chamar o Rei da parte da sua mãe para celebrar o jejum em comemoração dos antepassados. O rei hesita ente as solicitações imperiosas do seu coração e o cumprimento do dever sagrado com os antepassados. O rei parte para a corte. Xacuntalá sofre rudemente com este afastamento. Entretanto Durvassa, um Rixi, austero, de ânimo duro, vingativo e colérico, visita o Eremitério. Xacuntalá é abismada na sua mágoa, não cumpre os deveres de hospitalidade com Durvassa. O severo Rixi, irritado por esta falta de atenção, lança uma maldição sobre Xacuntalá.

Vai passando o tempo. E o Rei, que prometeu dar notícias suas dentro de três dias, não voltou nem recado manda. Xacuntalá julga-se abandonada e fina-se de sanidade. Vestiu-se de luto. Sente-se morrer... Impetra Suriá a que não abandone nesse transe aflitivo. As amigas consultam um Vidente e este revela que Xacuntalá concebeu do Rei um filho que trará um estigma de soberania. Ele será um Monarca Universal. Mestre Cannvá não tardará a regressar do Eremitério. As duas companheiras e Gautami, a superiora do Eremitério, vivem numa dolorosa ansiedade, na perspectiva de que Mestre Cannvá se irritará com o sucedido. Gautami anda rabugenta, mal-humorada, e imputa, injustamente, às duas amigas de Xacuntalá que viria a ser um dia uma Rainha. Mas quando lhe revelam que o Rei não voltou há quatro luas, sente-se contrariado. Recorda-se, então, que um infortúnio haveria que ser sofrido por Xacuntalá. Priamvadá informa-o de que Durvassa veio ao Eremitério e que Xacuntalá, preocupada com a partida do Rei para a corte, não cumpriu os deveres de hospitalidade com o rigoroso asceta. Cannvá reconhece que era esse o infortúnio que pesava sobre o destino de Xacuntalá. E a hora solene de sacrificar o Fogo. Procedem, no altar ao rito sagrado. O Sacerdote impetra Agni para que esconjure o malefício de Durvassa e resgate Xacuntalá de maldição. Cannvá tira um bom pronuncio da forma como corre a cerimónia e resolve ir à corte entregar Xacuntalá ao Rei. Xacuntalá despede-se comovidamente do Eremitério. Partem todos para o Palácio. Mas, no caminho, o Xacuntalá perde o anel que o Rei lhe deu.

O Rei não reconhece Xacuntalá. Esquece por completo dos dias passados com ela. Como um riternello fatídico, ouve-se, de vez em quando, a Canção da Abelha

“Abelha, abelha
Como és volúvel!
Depressa esqueces
A pobre flor
Que te deu o mel
Do seu amor

Abelha, abelha
Como és volúvel
Como o amor.”

Porém, um dia chega à Corte um pescador com o anel perdido, que ele achara no ventre dum peixe. Volta a memória do Rei do tempo passado no Eremitério em companhia da meiga Xacuntalá. O Rei manda chamá-la à sua presença e pede-lhe mil desculpas pela perda da memória e aceita-a como Rainha, no meio de estrondosa festa.

Wednesday, 15 June 2011

RV Pandit - Folha do Tamarindeiro (1968)

É uma folha inteira
Mas dividida em outras
Pequeninas
Cada uma delas
Inteira...

A folha toda
É inteira?
É dividida?

Assim é a minha mente
Inteira
Mas infinitamente dividida
Inteira e dividida
Tal qual uma folha do tamarindeiro.

Tuesday, 14 June 2011

Fradique - Pio da Gama Pinto (1967)

Pio da Gama Pinto, mais conhecido por Pio Pinto, que foi ontem alvo de merecida homenagem no Conselho Municipal de Mapuçá, pela passagem do 10o aniversário do seu assassinato, foi um denodado combatente da liberdade e ardente paladino da igualdade social que pagou com a vida a sua dedicação à causa por que pugnou desde muito moço.

Nascido na Quénia em 1927, foi, pode dizer-se, um queniano, um africano, não só par droit de naissance, mas também por droit de conquête a ponto de um ilustre dirigente politico, o sr. Oginga Odinga, daquele pais o ter apelidado de Patriota Africano. E, tendo já antes lutado pela libertação de Goa e depois, alcançada a independência pelo Quénia, batalhando também pela de outros países africanos e, de um modo geral, de todos os territórios coloniais, foi um dedicado obreiro da causa do anti-colonialismo a ponto de Lord Fenner Brockway, o fundador e presidente da Liga Anti-Colonial de Londres dizer que I died a little myself when I heard of Pio’s assassination.

Se foi ainda em Goa, quando vivia com seus pais em Carrem de Socorro, sua aldeia ancestral, a estudar em Arpora, que Pio começo a ler os primeiros livros sobre o socialismo, sentindo o espírito revoltar-se contra a exploração económica que representa o sistema agrário de batcares e mundcares, foi em Bombaim, primeiro, que, inscrevendo-se no Congresso Nacional de Goa, e depois em Nairobi, no East African Indian National Congress, que Pio se revelou como incansável lutador contra a opressão politica.

Preso pelas autoridades britânicas durante a famigerada Operation Anvil, desterrado uns poucos meses depois do seu casamento, por quatro longos anos, na longínqua ilha do Manda, onde foi mantido incomunicável mesmo com a sua esposa nos dois primeiros anos, transferido para Kabaruet com restrição de movimentos e finalmente posto em liberdade, Pio lançou-se de novo na luta, com redobrado vigor, até a libertação de Jomo Kenyatta, tido por chefe da suposta seita terrorista, Mau-Mau.

Membro da Assembleia Legislativa Central, eleito em 1963 e deputado especialmente eleito para a câmara parlementar no ano seguinte, muito havia ainda de esperar de Pio, trabalhando naquele alto órgão legislativo em intima colaboração com o grupo parlamentar da Kenya African National Union (KANU) e como um dos gestores do Instituto Lumumba, bem assim como organizador do movimento sindicalista no Quénia, se não tivesse sido varado por uma bala assassina em princípios de 1965.

Pio foi também jornalisa que fez da pena uma verdadeira espada, trabalhando primeiro em posições subalternas nos periódicos Tribune e Colonial Times, em seguida, como editor do diário inglês-guzerate Daily Chronicle, depois ainda no órgão da KANU, Sauti Ya Mwalrika, e, finalmente, fundando a Pan-African Press, com larga ressonância em todo o continente, de que foi editor-em-chefe, tornando-se digno do galardão póstumo da Organização Internacional dos Jornalistas pela sua “importante contribuição ao desenvolvimento da cooperação e unidade dos jornalistas”.

Fradique que o conheceu em Nova-Deli, por ocasião do seminar sobre as colónias portuguesas de África em 1971, curva-se reverente perante a memória sagrada de quem William Attwood descreveu como um “brilhante táctico” e Malcom MacDonald como “organizador de um movimento político como nunca se via em tempo algum e em pais algum no mundo” – dois tributos que, por virem donde vêm, dão bem a medida do seu valor e da perda que a sua morte prematura, aos 38 anos, representou para a causa da liberdade em todo o mundo.

Laxmanrao Sardessai - O Inferno (1966)

Eu marcho, incansável, direito,
Mas dizem-me os meus:
“Tu marchas para o inferno
Onde há ódio e vingança,
Ignorância e pobreza”.
E eu não hesito – marcho avante….
Firme e decidido,
Como sempre fui na vida,
E marcho, sereno e contente,
Porque levo comigo
A chama das ideias
E a fé do meu ideal
E o espírito de sofrimento,
Se, na verdade, marcho para o inferno,
Em vez de paraíso,
Estou certo de que em breve,
Quando eu entrar no inferno,
Este se converterá num paraíso
À força de ideias,
E do ideal e de sofrimentos
Que levo comigo.
Deixai-me passar amigos,
Porque onde entram as ideias
E mais o sofrimento
Não há inferno
Há só paraíso.

Monday, 13 June 2011

Augusto do Rosário Rodrigues - São João nas Aldeias (1981)

Viva São João! Viva a nossa gente!
Nos poços, os rapazes atiravam
Jacas, mangas, brindões, festivamente;
E semi-nus, aos guinchos, lá nadavam.

Logo os outros bairristas cá chegavam
Com garrafões de urraca, bem recente;
Todos agora, juntos, chafurdavam
A cantar um mandó, fresco, indecente…

De volta para o lar, roucos, cansados,
À mesa já não viam os guisados;
Sarapatal, sadnans, lagostim.

Coroados de rubras trepadeiras,
Dormitavam cozendo as bebedeiras,
Esses heróis de pinga e langotim!

Sunday, 12 June 2011

Visnum Porobo Sincró - A Chuva (1966)

Entontecidos na estação calmosa,
Aborrecidos do calor e suores perenes,
Dão graças a Deus quando chega
A chuva benfazeja e protectora!
A frescura que reina no ar
Deleita os sentidos e acalma
A estiagem seca e maçadora.
Em proveito da petizada que se alegra,
Verdura por todos os lados,
Novos rebentos aqui e além;
Os trabalhos agrícolas abundam;
O sol é raro; que mal aparece;
Há mudança da temperatura
Refrescada pela chuva divina.

Friday, 10 June 2011

FX D'Mello - Goa (1967)

Um trapézio disforme sem rigor,
Beijando a base os lábios da Ninfa,
Prostrada em leito d’argentina linfa,
De Galgibaga aos pés do Sonsogodd;

Aia de Idalcão, outrora conquistada,
Berço de escritores sublimados
Tumba de santos e heróis venerados,
Roma do Oriente, após ser baptizados;

Mãe de filhos de fama universal
Nenhuma assem pequena ou outra igual;
Fora tão cobeçada e ainda leal jaz;

Só Goa... Noiva graciosa do vidente,
Miragem encantada e sorridente,
Glória nos traz... Bendita Arca de Paz!

Maria Juliana Cordeiro Monteiro - Salvé Nehru (1961)

O feitiço da Nação!
Este povo pluriracial
Feito uno no momento actual
Te saúda com efusão.
Põe a terra toda em chama
O teu verbo claro e ardente,
Despertando o orgulho dormente
Da velha Índia de altiva fama.
Diante do teu génio audaz,
Na angústia da hora severa,
O Bharat ajoelha e espera
Que por ti lhe venha a paz.
Mas hoje, data querida,
Sente-se cá dentro um não sei que...
- Salve! “Parabéns a Você,
Muitos anos de vida!” –
Canta, uníssona, a jovem Nação,
Qual meiga, tímida donzela
Tu não és só cabeça dela,
És também seu coração!

Cyrano Valles - Tudo Perdi (1966)

Tudo perdi
Quando a sina mesquinha
Desfolhou as rosas
Do nosso amor
Com mãos impiedosas.

Nada me consola agora.
Nem a toada do vento
Nas verdes pinheirais,
Nem a lânguida beleza do mar
Em noites do luar.

Tudo perdi
Quando te perdi.
Ferido
Pelo destino perverso,
Vivo só de saudade
E, no silêncio das estrelas,
A minha dor sem par,
Espraia-se pelo Universo
Em ondas de agonia.

Thursday, 9 June 2011

Guilherme Santos - Dadrá (1946)

Vibram nos ares ainda, os brados repugnantes
Dos assassinos vis, cobardes, desumanos
Que, como alcateia, famélico, uivante,
Os punhais embeberam em peitos Lusitanos!
Vibra no ar, ainda, o trágico instante
Da queda de Dadrá... de queda dos valentes,
Que, oferecendo o peito, ao gume traiçoeiro,
Ganharam direito a estar sempre presentes
No coração do povo, de PORTUGAL inteiro!

Passaram meses... os anos em turbilhão,
Na voragem do tempo, que tudo apaga
Tudo nnao!... Que a honra desta Nação,
Que os seus filhos ama e tanto afaga,
Não pode esquecer, Dadrá, sacrificada,
Não esquece os heróis que ali tombaram!
Temei, pois, corja vil, esfarrapada,
Que levantar o braço armado, a tanto ousaram
Que a espada da justiça é bem pesada!

Temei, sim, temei, porque a alvorada,
O raiar do novo dia... a expiação
Vem surgindo, passos largos, apressada
A castigar esse crime, essa traição!

Temei, oh! Sim, temei, porque a própria natureza,
A terra inteira, para sempre bradará...!
Dadrá não vos pertence, é sempre portuguesa!

Dadrá, continua firme, sincera e leal,
E viverá eternamente, bem ligada a PORTUGAL!

Bicaji Ganecar - As Estrelas (1970)

Pensei em contar,
Um dia,
As estrelas
Do firmamento.
Naquele instante
Caiu uma estrela,
Estrela cadente;
E contei essa só
E as outras ficaram
Por contar

Visnum Porobo Sincró - Consulta (1971)

Como se analisa o génio humano?
Pelo exterior ou por factores concretos?
Quantas vezes tenho merecido censuras
Por causa do meu procedimento sincero.
Como lidar com gente do Mundo?
Qual é o valor da Verdade?
Dizem os sábios: deve-se mentir
Para salvar a vida de alguém!
Ser hipócrita palavras meladas,
Nem sempre se governa com isso;
Pode-se intrujar uma vez toda a gente,
Que pela segunda vez não se ludibria....
O que será bom meu Deus?
Ser hipócrita ou franco?
Ha quem diga que devesse proceder,
Remar por lado da maré.

Pondá, 8 de Setembro de 1971

Cyrano Valles - Bilhete de Natal (1965)

Escuta!
No marulhar das ondas
Não ouves um coro celeste?
No chilrear dos passarinhos
Não ouves a voz de Jesus?
As flores e os campos doirados
Não te falam do Senhor?

Não pressentes a Divindade
No cilintar das longínquas estrelas?
E no humilde cardo
Não sentes palpitar o Eterno?

Natal! A Luz
Dissipa as trevas;
A Verdade triunfa sobre a mentira;
O Amor vence o ódio
Escuta! Um rumor divino
Se espraia pela noite estrelada;
É a voz do Deus menino –
A Voz da Eternidade –
Dizendo: “Paz aos homens de boa vontade”

Wednesday, 8 June 2011

RV Pandit - Aquelas Mulheres (1969)

As mulheres
Outrora,
Quando zangadas
Sorriam por um presente
Do marido…

Isto ouvi eu
Na minha infância

Onde estão
Tais mulheres? Digo mal
Onde estão
Tais presentes?!

RV Pandit - Sem Desejo (1968)

Tu dás-me farelo
Eu te desejo
Eu dou-te pão
Tu me desejas

Tu dás-me grão de trigo
Eu te quero
Dou-te manteiga
Tu me queres

Aliás…

O poço não quer roldana
A roldana não quer a corda
A corda não quer calão
O calão não quer água

A água não quer o fundo
O fundo não quer o leito
Ninguém quer o outro
Ninguém quer nada

Palém, 8/4/1959

Tuesday, 7 June 2011

Carmo Azavedo - Castas e Classes na Sociedade Goesa (1975)

Formas qualitativamente diferentes de estratificação social, as castas e as classes diferenciam-se nisto: estas representam um sistema vertical enquanto aquelas representam um sistema horizontal, quer dizer, ao passo que um individuo pertencente a uma classe inferior pode passar para uma classe superior ou vice-versa, quem nasce numa casta alta, morre nessa mesma castas, sem poder subir nem descer.

Se, com o advento dos portugueses, se tivesse destruído o sistema das castas, típico da sociedade hindu, a sociedade goesa ter-se-ia estratificado por classes. Assim não aconteceu, porém, e manteve-se a estratificação social por castas, com a sua rígida endogamia, e as suas rivalidades tradicionais.

É realmente curioso notar que, posto que o cristianismo fosse uma religião igualitária, os portugueses que o introduziram em Goa tivessem mantido o sistema das castas, talvez para firmar melhor o seu domínio, de acordo com a máxima romana, divide e impera.

Torna-se deveras significativo, pois, que tanto as autoridades civis como eclesiásticas houvessem respeitado, senão em princípio, pelo menos na pratica, o sistema das castas, como se vê pelas ordens ou instruções de Vice-Reis ou Arcebispos, citados pelo Pe. Judas Barros na sua tese de doutoramento por apresentar à Universidade Jawaharlal Nehru.

Assim, por exemplo, o Vice-Rei, D. Francisco de Távora, Conde de Alvor (1681-86), quando mandou que todos os naturais de Goa aprendessem o português (como, mais tarde em 1745, faria também o Arcebispo D. Lourenço de Santa Maria, exigindo o conhecimento da língua para o casamento), deu o prazo de seis meses aos brâmanes e chardós e de um ano às outras castas.

Por sua vez, o 1o Concílio Provincial, reunindo em 1567, no episcopado de D. Gaspar de Leão, ordenou que se admitissem os sacerdócio só brâmanes ou prabus ou classes consideradas nobres, o que foi confirmado pelo 3o concílio sob a presidência do Arcebispo D. Frei João Vicente da Fonseca, mudando-se a designação de classes nobres para superiores.

Exemplos frisantes do exclusivismo castista, citados por Judas Barros, nas nossas instituições religiosas são a congregação dos teatinos a qual só foram admitidos brâmanes, com excepção de um só chardó em 1831, e a dos carmelitas que era exclusivamente dos charós, bem como a confraria de N. Sra. Da Conceição em Margão, aberta só a brâmanes, enquanto a do Smo. Sacramento e N. Sra. De Salvação era constituída de brâmanes de Bensaulim e chardós de Canã e a de S. Miquel e Santas Almas de chardós, sudras e curumbins (mas não boiás).

De igual modo, as autoridades portuguesas permitiram a existência de comunidades agrícolas exclusivas de brâmanes, chardós, sudras e curumbins, como também mixtas, não casando em certos casos filhos de jonoeiros senão com filhas dos que também fossem jonoeiros.

Assim se compreende que o sistema das castas, característico da sociedade hindu, passasse quase intacto para a sociedade cristã de Goa, mantendo-se através dos séculos a estratificação social com base na casta e não na classe, mercê do regime endogâmico e das rivalidades tradicionais que os portugueses nada fizeram para acabar, antes pelo contrário.